Ela sorri na foto. Pele impecável, contornos bem definidos, olhar vibrante, tudo calibrado por filtro. Na legenda, uma frase motivacional. Nos bastidores, noites mal dormidas, crises silenciosas e uma sensação persistente de vazio. Esse cenário, que parece exagerado, é mais comum do que imaginamos. Há uma epidemia invisível acontecendo, e ela não está nos consultórios dermatológicos ou nas clínicas de estética. Está na alma de pessoas que, cada vez mais, abandonam quem são para manter uma imagem que agrada, que convence, que performa.
O culto à estética alcançou um novo patamar. Não se trata mais apenas de vaidade ou autocuidado. A obsessão pela “harmonização”, que já não é apenas facial, mas comportamental, virou uma forma de sobrevivência social. Vivemos uma inversão de valores, em que parecer está substituindo ser. É mais aceitável ter um rosto impecável do que admitir uma tristeza. Mais valorizado ter uma imagem forte do que mostrar vulnerabilidade. Mais confortável caber no ideal do outro do que lidar com a complexidade de si mesmo.
Os números escancaram uma contradição difícil de ignorar. Procedimentos estéticos não cirúrgicos, como preenchimentos e harmonização facial, tiveram um aumento estimado entre 200% e 300% nos últimos anos, de acordo com dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, amplamente divulgados pela imprensa. No mesmo período, o Brasil se consolidou como um dos países com maiores índices de ansiedade e depressão no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde. Há algo nitidamente desalinhado. Enquanto os rostos se moldam para se aproximar de um ideal estético, as mentes adoecem em silêncio. A autoestima parece inflada, mas carrega a fragilidade de um cristal. Estamos cada vez mais bonitos nas imagens, mas cada vez mais ausentes de nós mesmos.
As redes sociais aceleraram esse processo. Viramos personagens de nós mesmos. Encenamos felicidade, disfarçamos exaustão, apertamos os dentes para manter o script. E quanto mais likes recebemos, mais nos convencemos de que aquela versão editada é a verdadeira. Só que o corpo cobra, o sono cobra, os relacionamentos cobram. O silêncio que guardamos começa a fazer barulho dentro. E, quando explode, já não sabemos como voltar.
Há algo perverso na forma como estamos nos comunicando com o mundo e, pior, conosco. Escutar a si mesmo virou luxo. Confessar fraqueza virou vergonha. Sentir tristeza é quase um pecado capital numa cultura que exige disposição, leveza e beleza o tempo todo. O risco disso é evidente: perdemos a chance de sermos inteiros. Inteiros com nossas dores, nossos processos, nossas marcas. Há sabedoria nas imperfeições, mas estamos eliminando todas elas em nome de uma estética que nada tem a ver com saúde ou bem-estar.
É urgente recuperar o valor do que não se vê. As pessoas estão precisando de espaços onde possam ser reais. Precisam poder chorar sem pedir desculpas. Precisam ser escutadas sem serem julgadas. Precisam de conexão, não de curtidas. O caminho de volta para isso é íntimo, exige coragem. Mas é o único que verdadeiramente sustenta. Porque nenhuma agulha no rosto vai curar um coração que se sente invisível. Nenhuma simetria externa vai compensar o caos interno de quem não se sente suficiente.
No fim das contas, a pergunta que fica é uma só: o rosto que mostramos ao mundo é reflexo de quem somos ou apenas daquilo que acreditamos que o mundo aceita ver? Harmonizar o rosto é uma escolha. Harmonizar a mente é uma necessidade. E, talvez, seja essa a beleza que realmente importa.
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Cristina Mesquita é jornalista, cerimonialista e graduada em Direito. Diretora de Comunicação da Associação Brasileira de Profissionais de Cerimonial (ABPC), é coautora do livro ‘Comunicação & Eventos’ e especialista em organização de eventos. Possui MBA em Gestão de Eventos pela ECA-USP.