Portões da comunicação: os fenômenos de 'gatekeeping' e 'gatewatching'. Por Lilian Sanches.

Ao longo das últimas duas décadas, a mídia tem exercido um papel importante na formação da opinião pública global, como corrobora Margarethe Steinberger (2005), que definiu a “nova ordem internacional” como uma ordem tipicamente midiática.

A instantaneidade imposta pelas plataformas digitais influenciou as práticas jornalísticas em todos os meios, imprimindo uma nova dinâmica para a produção noticiosa e a relação entre veículos, jornalistas e público. Antigos leitores agora são capazes de, não só, interagir em tempo real com as notícias publicadas, como pautar os veículos conforme a movimentação (mais ou menos) interativa nas redes sociais.

As plataformas digitais já possibilitam a participação do público não só na ressignificação dos acontecimentos, mas também na produção dos conteúdos e formatos que circulam nos nichos midiáticos (CASTELLS, 2012). No entendimento do autor espanhol, a multimidialidade das novas mídias tem o poder de modificar as experiências humanas, transformando o modo de perceber e criar simbolicamente o mundo já que Castells considera a cultura como mediada e determinada pela comunicação: “Isto é, nossos sistemas de crenças e códigos historicamente produzidos são transformados de maneira fundamental pelo novo sistema tecnológico e o serão ainda mais com o passar do tempo” (CASTELLS, 1999).

Na primeira fase do jornalismo digital, diversos teóricos argumentavam acerca das novas circunstâncias da produção noticiosa, que à época apenas reforçavam a lógica do gatekeeper, noção criada pelo psicólogo social Kurt Lewin na década de 1950. Com base nas ideias de Kunczik (1997), Pereira (2004) apontou que, ao selecionar dentre uma infinidade de informações disponíveis online quais devem ser publicadas como notícias, a produção geral para internet é desempenhar a função de gatekeeper, pois “os ‘porteiros’ contribuem, assim, para moldar a imagem que o receptor tem de sua sociedade e de seu mundo”.

Atualmente, a corrente de pensamento encabeçada pelo australiano Axel Bruns defende que já estamos no momento de passagem do modelo jornalístico de gatekeeping – no qual os jornalistas presumem o interesse do público -, para prática do gatewatching (BRUNS, 2005), a partir da qual certas hierarquias entre jornalista e público são dissolvidas, permitindo que este último grupo participe ativamente da seleção noticiosa. Segundo o autor, é possível que ainda exista a necessidade da intervenção editorial para o direcionamento das matérias consideradas mais importantes, porém esse processo pode ser realizado por meio do destaque especial dado às matérias consideradas mais importantes e não pela simples exclusão de notícias que caírem abaixo do nível estabelecido pelo editor, como acontece com o fenômeno de gatekeeping (BRUNS, 2011).

A partir de estudos conduzidos na década de 1960, Marshall McLuhan (1964) defendia – aliado ao conceito da aldeia global – que a tecnologia e, consequentemente, os novos meios de comunicação, seriam capazes de integrar o público aos processos de produção de informação, conceito que dialoga com a teoria de Bruns (2005).

Conceitualmente, o modelo de gatewatching representa a transmutação do jornalismo de massa para o “jornalismo com participação das massas”. Bruns (2011) demonstra que as mudanças nas práticas tradicionais da indústria noticiosa resultam primordialmente do impacto da mídia social em tempo real na divulgação e discussão das notícias. “As plataformas da mídia social como o Facebook e o Twitter servem para acelerar ainda mais a velocidade em que as matérias noticiosas são compartilhadas, debatidas e às vezes desacreditadas” (BRUNS, 2011. p. 13). O argumento do autor evidencia a intrínseca atuação e influência das redes e usuários na definição de pautas e cobertura noticiosa, considerando que “praticamente todas as importantes matérias noticiosas factuais em 2010 e 2011 foram propulsionadas de maneiras significativa pela sua cobertura nos espaços da mídia social” (BRUNS, 2011).

Sob a luz das contribuições do sociólogo francês Jean Baudrillard (1981), o conceito de gatewatching pode se encaixar na definição de hiperrealidade, devido à possibilidade interativa do público com a produção de conteúdo por meio das plataformas digitais gerar uma falsa ideia de participação e controle. O pesquisador brasileiro Saulo de Assis Sáes Neto (2016) expande essa hipótese, afirmando que o modelo proposto por Bruns é superestimado ao passo que os avanços tecnológicos, apenas, não seriam capazes de transpor as barreiras “de produção hierarquizada de conteúdo, elementos que definem há décadas o modus operandi das grandes empresas midiáticas, cujo poder é essencialmente mantido ainda que na web” (SÁES NETO, 2016; p. 3).

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BAUDRILLARD, J. Requiem for the media. Disponível em: <http://shmacek.faculty.noctrl.edu/Courses/MediaCritSyllabusSPR2_files/19-baudrillard-03.pdf>. Acesso em: 30/09/2018.

BRUNS, A. Gatekeeping, gatewatching, realimentação em tempo real: novos desafios para o Jornalismo. Brazilian Journalism Research, vol. 7, num. 11. Brasília: SBPJor, 2011.

CASTELLS, M. A galáxia da internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

SÁES NETO, S. Limites e aplicabilidade do conceito de gatewatching na produção de conteúdo em meio digital: novo modelo de comunicação ou hiperrealidade? Artigo apresentado no Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Salto – SP – 17 a 19/06/2016.

Lilian Sanches é jornalista, mestre em Comunicação Social e doutoranda no Programa de Psicologia Social e do Trabalho da Universidade de São Paulo.

E-mail: liliansanches@usp.br