Ordem ou papo reto? Por Juliana Fernandes Gontijo.

Pelas ruas sombrias da cidade, Francisco, um garoto afrodescendente, caminhava sozinho. Olhos bem abertos e boca sedenta por um copo d’água. Com roupas levemente rasgadas, boné virado do avesso, chinelos arrebentados, o menino passava por entre os carros. Uma sacola de plástico na mão direita denunciava que ele teria, pelo menos, algum resto de comida até chegar o fim do dia. No ombro esquerdo tinha pendurada uma caixa de madeira.

Terceiro filho de uma prole de dez, o menino trabalhava todos os dias para ajudar os pais. A mãe era doente da perna direita e ganhava a vida bordando panos de prato. O pai, marceneiro, teve sua oficina destruída por um incêndio há dois anos, logo o serviço diminuiu bastante. Desde então, o garoto e seus dois irmãos mais velhos decidiram que trabalhar seria uma alternativa para ajudar a colocar comida em casa e pagar o aluguel do casebre onde viviam. Dois quartos, uma pequena sala, cozinha e um banheiro no quintal formavam o humilde e pequeno lar de Francisco e da sua família.

Na tenra idade de nove anos – sobre seus ombros pequenos – tentava suportar muita responsabilidade. Todas as manhãs, saía de casa às cinco e meia com a caixinha de madeira que o pai lhe fizera, algumas latinhas de graxa e duas escovas. Fazia sempre a mesma oração: “Obrigado, Deus, por mais um dia!”. Seus instrumentos de trabalho eram bastante limpos, diferente da sua roupa e dos chinelos. Para ele, não era muito fácil manter-se limpo, engraxando sapatos. Entretanto era um garoto caprichoso, realizava honestamente e com bastante habilidade o seu trabalho de engraxate, das sete da manhã às cinco da tarde.

O entardecer era movimentado. Muitos passavam por ele, como se não existisse. Cidade grande é assim: as pessoas preferem não se envolver com desconhecidos. Fingir que não se vê os problemas alheios ou externos isenta qualquer um de responsabilidades futuras.

Ele caminhava a favor do vento, deixando-se levar para bem longe, como se não tivesse compromissos. Engana-se quem assim pensa. “Como seria diferente se eu fosse rico… se eu morasse numa casa bonita, cheia de quartos, banheiros, salas, uma piscina enorme… mas Deus não quis que fosse assim”.

Pelo menos quinze pessoas paravam todos os dias no “seu posto de trabalho”, a praça central da cidade. Ele ficava feliz, porém preocupado por não poder estudar e conquistar o seu maior sonho: ser paramédico do serviço de socorro de urgência.

Esta preocupação um dia lhe fugiu da cabeça, quando um senhor obeso e calvo, mais parecido com um executivo, o fez refletir sobre o futuro. Foi um papo reto e direto:

– A partir de amanhã, você vai trabalhar só durante a manhã e, à tarde, vai se matricular numa escola. Precisa aprender a ler e escrever.

Aquilo pareceu-lhe uma ordem.

– Eu não posso, meu senhor. Preciso ajudar a colocar comida em casa. Minha família passa por muitas dificuldades. O que farei se meus fregueses diminuírem? Falou com tristeza, porém com uma “pontinha” de esperança.

A resposta do homem veio com perguntas:

– O que você fará no futuro, caso fique sem estudar? Poderá ser um médico? Ou não é isso que você quer? Lembre-se bem, estude!

– Mas a vida é assim, uns podem, outros só olham…

– Levante-se para a vida, menino! O mundo te espera! E seus pais também. Dinheiro para escola não é problema, existem muitas públicas por aí. Faça sua vida valer a pena e um dia se lembrará do velho aqui. Estarei sorrindo para você onde quer que eu esteja. Bem, a fila do banco me espera. Tenho de receber minha aposentadoria, afinal trabalhei a vida inteira para isso, não é mesmo?

Os dois despediram-se. Francisco agradeceu os conselhos do freguês e o pagamento pelos sapatos engraxados.

Alguns minutos depois, o garoto ouviu um estrondo e, em seguida, um grito de voz masculina. Ele apanha depressa sua caixinha e atravessa correndo a rua que cortava a praça onde trabalhava. O menino era bastante curioso.

Parou perplexo no meio da rua, esquecendo-se de que os carros passavam por ali. Aquele senhor que, há pouco tinha lhe dado conselhos sobre um futuro promissor, estava caído à frente de um carro. Havia muito sangue espalhado e os olhos estavam virados. Uma roda começou a se formar ao redor daquele senhor.

Francisco não acreditava no que via. Tremia por inteiro, era a primeira vez que teve contato com a morte. Sequer sabia o nome daquele homem boa gente. Continuou imóvel, e uma multidão crescia ainda mais em volta do indivíduo. O resgate chegou e ele, perplexo… Tentava não chorar, porém não havia escolha. Estava mesmo sem ação. E seus olhos pareceram dois rios de lágrimas… Os paramédicos tentaram sentir os batimentos do acidentado, em vão. Ele estava inerte, a batida contra o carro fora violenta demais.

O garoto quis chegar mais perto, a fim de dar o último adeus ao seu freguês, mas foi empurrado pelo motorista do resgate:

– Menino, vê se não incomoda! Não há mais o que fazer. O corpo do homem foi coberto com um lençol branco.

Ele voltou para casa triste, fazendo uma oração para aquele ex-futuro amigo que morrera de forma tão trágica. Entretanto, bem no fundo do seu coração, existia uma pequena chama de esperança acendida por aquele fulano. Tal chama jamais iria se apagar.

Naquele dia, o menino “virou a chave”. Era preciso seguir aquela ordem vestida de papo reto! Decidiu que se tornaria médico e faria qualquer coisa para salvar todas as vidas que pudesse porque o falecido freguês sem nome o salvara do grande “naufrágio” do qual esteve muito perto.

Francisco tanto pediu que seus pais matricularam todos os filhos na escola. Ele e seus irmãos mais velhos correram atrás do tempo perdido. Por mais sete anos, além de estudar, trabalhou como engraxate, porém outro senhor obeso e calvo passou pela sua “caixinha” e disse:

– Filho, preciso dos seus serviços em meu hospital. Há muitos anos, eu passo diariamente nessa praça e o observo aqui “no seu trabalho”, vejo que entendeu: lugar de criança é primeiro na escola. Mas por motivos alheios à sua vontade, precisou trabalhar desde muito pequeno. Agora você vai trabalhar para mim, como aprendiz. Se realmente for um bom menino, trabalhador e dedicado, será muito bem recompensado. Nunca se esqueça disso!

Sorte? Não! Francisco estava no lugar certo e na hora certa. Era só uma questão de tempo.

Os olhos do agora adolescente brilharam de felicidade. E ele logo levantou as mãos para o céu agradecendo a Deus aquela oportunidade e se lembrou do senhor atropelado que apelidou de Pedro. “Um anjo que foi para o céu”. Francisco sabia que, de onde o homem estivesse, estaria olhando por ele. Juntou o seu material de engraxate e após um caloroso abraço no “patrão”, pediu-lhe uma carona até em casa, a fim de contar aos pais, junto com o ex-freguês, a nova mudança de rumo na sua vida.

Imagem: Pixabay.

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.