O tempo da sem hora avó. Por Renata Quiroga.

Relógio é um instrumento apresentado em diversas formas, que cumpre a funcionalidade de medir o tempo. Ao longo da história da Humanidade, surgiram várias tentativas de explicação para a origem do Universo. Em todas elas, a questão do tempo aparece como grande enigma que se divide em respostas físicas, religiosas, filosóficas e até existencialistas.

O pessoal da mitologia montou um belo enredo entre os primeiros deuses que apareceram no ponto zero da cena cósmica. Caos, o primeiro deus, se apresentou como precipício, queda sem fim e ausência absoluta de luz. Em seguida veio a deusa Gaya, que para dar suporte ao Caos, se reveste de chão no qual a queda livre é barrada, inaugura a finitude e interrompe a angústia do imperecível ato de despencar. Gaya aporta um lugar de possibilidade de existência como sucessor do caótico buraco negro.

Após a caverna de tártaro e o amor de Eros, surge Urano como eterno reprodutor de Gaya. Certo dia, Urano morto por um de seus filhos, irrompe os céus em uma escandalosa explosão. A partir dessa ilustração mitológica, teria surgido a primeira condição material de vida entendida como espaço e, com ele, aparece o tempo. O parricídio cometido por Cronos, a despeito da forma existencial do tempo, possibilitou sua finitude e sua repartição cronológica.

Nesse sentido, a condição estrutural da existência como espacial X temporal já foi descrita desde os pensamentos antecessores aos filosóficos sobre a Humanidade. Um bom exemplo da necessidade de manutenção do funcionamento desse eixo é a dificuldade sentida durante a restrição do convívio e da utilização do espaço em épocas de isolamento pela pandemia de Covid-19.

A ausência do ambiente presencial das relações causa uma espécie de efeito membro fantasma, em função da amputação do espaço na relação com o tempo. Essa comparação se exemplifica nos relatos pessoais sobre diversas sensações ocorridas no passar do tempo durante o isolamento: ora parece voar, ora se arrastar. Sendo que, na realidade, o tempo não altera sua velocidade, apenas a percepção humana é atravessada pela influência dos sentidos, prioritariamente pela visão e, consequentemente pelas propriedades da luz.

Toda essa reflexão sobre o tempo pode levar a pensar sobre seu aproveitamento, velocidade, finitude e outros valores agregados à essa grandeza que ninguém vê, toca, controla, mas que deixa marcas eviternas. O tempo que os pais passam com os filhos e os momentos em que netos vivenciam a companhia dos avós são marcos da transgeracionalidade, com dispositivos similares e efeitos multideterminados.

A relação entre avós e netos é contornada por uma pluralidade afetiva de borda bastante extensa, sendo que o fator longevidade admitido pelos idosos na contemporaneidade tem permitido uma amplitude dimensional na interação familiar.

Netos são a justa ação da vida de devolver aos avós suas crianças que hoje, sem tanta graça assim, tornaram-se adultos cercados de responsabilidades como qualquer outra pessoa.

Nos dias atuais, é frequente que netos sejam uma espécie de professores de tecnologia, que ensinem como melhor usar celulares, computadores e redes sociais, em troca de um conselho ou bate-papo recheado de experiência de vida. Nesse escambo de saberes, os avós desempenham múltiplas funções como: portadores da sabedoria, contadores de histórias, guardiões de segredos e pactos de amizades.

No cardápio da família contemporânea há uma enorme variedade de composições deste grupo que, muitas vezes, colocam avós com a responsabilidade financeira, legal e ou educacional de seus netos. Tais situações convocam os pais dos pais para exercerem funções da parentalidade mesmo não sendo seus pais biológicos. Contudo, considerando a estrita função da avosidade, na qual cada um desempenha seu papel familiar com interdependência, o tempo vivido com os avós pode ser elemento valoroso para construção da subjetividade da criança e do adolescente.

A despeito de considerações sobre educação das crianças, sobre o que é balizado entre certo e errado, sobre a fama dos avós como deseducadores de netos; uma experiência com qualidade relacional entre avós e netos garante a ambos momentos de rara preciosidade. A experiência entre avós e netos não precisa ser um contraponto educacional à forma como os pais moldam seus filhos. Contudo, a liberdade do uso do tempo entrega aos netos um viver torcido que contempla os segundos fora de enquadres. O tempo da existência é marcado pelo relógio pendular, que se movimenta apenas no ritmo da oscilação de suas pulsões.

Os compromissos vividos durante a rotina infantil administrada pelos pais, acabam jogando as crianças na divisão cronológica do tempo, ceifado pelos incontáveis compromissos diários. Enquanto isso, na doce casa dos avós, além da sobremesa antes do jantar, tudo que lhes é permitido é viver ao contrário. A quebra dos ponteiros do relógio que come o tempo, dá lugar para a construção da casa na árvore, p’ro jogo de damas, para plantar mudinhas no jardim, ler histórias, brincar de esconde-esconde ou para qualquer coisa que contemple o tempo existencial.

Em um recorte ainda mais específico, fica a apreciação da tríade avó – mãe – neta que se ergue em uma das mais belas esculturas do feminino. Como nas narrativas míticas, a passagem do tempo e das heranças transmitidas entre as figuras destas três mulheres aparecem de forma circular sem que a percepção capture, exatamente, o que cada uma acrescenta à outra.

A eterna reprodução dos ciclos permite o jogo fundamental das destruições e restaurações relacionais entre avó, mãe e neta. O retorno de filha e neta ao colo da avó, repete Gaya em sua salvadora aparição frente ao caos. A matriarca se presentifica em chão seguro, em vida atemporal, em símbolo primevo da existência, para ladrilhar as ruas da vida com pedrinhas de brilhantes, só para ver seus amores passarem.

Antevisto pelo Sol, gotejado pela água ou digitalizado pelo frenesi da modernidade, o tempo tem seu tempo e suas próprias medidas. Já as ampulhetas – palavra também feminina representativa de relógio – carregam a terra e o tempo dentro de si. Em constantes giros de ponta-cabeça, vão driblando a finitude porque sabem que vivemos para desaparecer. Nascemos e morremos, mas a vida não! A vida continua tal qual a avó eterniza seu ventre no tempo de suas netas.

Homenagem da coluna ao dia internacional das mulheres – março, 2021.

Renata Quiroga é psicanalista, coordenadora de Serviço Social, Psicologia, Psicanálise e Psicopedagogia – PSFP.