O primeiro voo a gente nunca esquece. Por Juliana Fernandes Gontijo.

– Já afivelou o cinto, Renato?
– Claro, Lidiane.
– Tem certeza de que isso realmente sobe?
– Claro.
– Não está claro. Fiquei sabendo que um A-380 pesa mais de 560 toneladas cheio. Não vai subir.
– Também não está escuro, dá p’ra ler, olhe esta revista…
– Não brinca. Tô com medo.
– Deixa disso, segure minha mão.
– Quero um abraço.
– Agora não tem como.
– E se cair?
– Não vai cair. Fica calma, estou aqui do seu lado.
– Mas o que eu posso fazer? Eu precisava ter sido desmaiada para entrar aqui. Mais de 14 horas de voo de Guarulhos até Dubai.
– Você vai aguentar. Qualquer coisa, durma.
– Dormir como? Não para de entrar gente. Eu quero sair daqui.
– Quieta, moça. Basta seguir as instruções. Tudo vai ficar bem. Até as 7 da manhã estaremos lá.

– O que eu vou fazer durante mais 14 horas aqui dentro?
– Ver um monte de filme, jogar no tablet, ler os livros que você trouxe.
– Não é bem assim, não consigo me concentrar.
– Você vai ficar bem, vamos nos divertir muito em Dubai. Não era isso que você queria?
– Sim, mas…
– Então, quietinha menina. A porta fechou.
– Por Deus, não fala nada!
– Siga as instruções.
– Eu vou seguir o quê?
– Psiu! Silêncio.
– Tudo bem, moça. Eu vou fazer silêncio, mas estou em pânico. Veja como eu tremo toda.
– Ouviu bem o que ela disse? Pare de falar.
– Parei.
– Afivelou o cinto?
– Afiveladíssimo. Você me pediu para fazer silêncio, OK.
– Vai subir.

– Pelo amor de Deus, aperte firme a minha mão.
– Fique calma, vai dar tudo certo. Vamos nos divertir muito na Lua de Mel, pode ter certeza disso. Vamos ao prédio mais alto do mundo.
– Eu não dou conta de uma velocidade dessas… Sobe logo. Estou ficando sem ar…
– Calma, meu bem. Calma.
– Esse piloto poderia calar a boca. Eu lá quero saber a que altitude vamos chegar? A quantos mil pés estamos do chão? Qual a temperatura? Não! Eu quero descer!
– “Encosta a sua cabecinha no meu ombro e chora”…
– Ah… lá vem você fazendo piada.
– Mas é só p’ra você rir um pouquinho.
– Não me enche, quero uma água. Na verdade, eu queria um sossega-leão.
– Quer saber, amor, você precisa mesmo de um “sosseguinha”… Tenta se divertir, vai.
– Faz uma palavra cruzada, trouxemos três revistas.
– Não quero. Vou roer todas as unhas, até as dos pés.
– Ah… Lidiane, quieta, pelo amor de Deus. Encosta aqui no meu ombro, por favor. Dá um tempinho vai…
– Você quer que eu durma só p’ra calar a minha boca?
– Não é isso, menina. Pense no tanto que vamos nos divertir em Dubai…
– Estou com medo, amor, medo do avião cair!

– Pensamento positivo, são só mais 13 horas e meia. Não é tanto assim.
– Para de falar em tempo de voo!
– Então vamos assistir a um filme, daqueles “aguinha” com açúcar que você tanto gosta.
– Pensa aí numa comédia boa p’ra eu tentar rir um pouco. Debi & Loide, pode ser?
– Isso é idiota demais. Mas tudo bem!
– Juro, vou tentar ficar bem, mas…
– Promete que vamos assistir ao filme e você para de reclamar? Eu não quero brigar com você na nossa Lua de Mel. Mas você parece que pede uma discussão.
– Eu disse que tinha medo de avião. Você sabia desde o início. Poderíamos ter feito um cruzeiro, eu já ficaria satisfeita.
– OK, vamos ao filme.
– Nem meia hora e já dormiu?
– Não me enche!
– Só estou tentando ser bonzinho…
– Quantas horas, pelo amor de Deus?
– Pensa bem, já se passaram seis horas e meia de voo. Percebe que você está mais tranquila?
– Que tremedeira é essa? Não! Vamos cair e vai ser em cima do Atlântico. Meu Deus! O que é isso? Estou com dores de barriga, quero ir ao banheiro.
– Agora não é hora, amor. Não tire o sinto. É só uma turbulência, vai passar! Muito comum nessa região do Atlântico.

– Me dê um abraço forte. Estou mesmo com medo de morrer. Primeiro vai despressurizar, as máscaras vão cair, e os botes, as janelas vão quebrar. Não vai sobrar nada da gente. Vai cair cada um para um lado, se a gente não congelar no ar e depois tichbum!
– Não ouviu o que o piloto disse? São só alguns minutos. Imagina quantos voos diários no mundo inteiro e quase não ouvimos falar em acidentes.
– Para! Não me fale em acidentes.
– Ah… mulher. Você fala demais. Está vendo? A turbulência já passou. Quer ir ao banheiro, vá. E volte mais calma, pelo amor de Deus.
– Não, passou a vontade. Aí, está vendo? Era só da turbulência. Não quero banheiro.
– Então ande um pouco para diminuir o inchaço das pernas.
– OK, só uns 5 passos e alongamento.
– Ouviu o que o cara do lado disse? Para de falar, Lidiane!
– Eu só estou com medo e ninguém entende isso!
– Eu sei, amor, mas fique quietinha em silêncio, por favor. Conte carneirinhos…
– Um carneirinho, dois carneirinhos, três carneirinhos, quatro car…

– Fale baixo, ninguém precisa ouvir, caramba!
– Comissária, outra água, por favor. Ela precisa dormir, não dá sossego há mais de sete horas.
– Tome seu remédio, amor, ou não vamos conseguir nos divertir em Dubai…
– Vou tentar ficar quieta, mas é pânico! Desculpe, Renato. Eu não queria que fosse assim.
– É preciso, meu bem, tome isso logo. O médico ali atrás disse que se você não der sossego ele vai precisar te conter. Eu não quero ver você assim…
– Não! Estou bem, só com medo… Quero descer. Abra a porta, comandante!
– É preciso contê-la, rapaz. Ela não está nada bem. Não há outro remédio. É para o bem geral do voo… E será na base do injetável mesmo.
– Não quero, solta meu braço! Eu sou a Lidiane campeã de muay thai. Um só golpe meu vai te mandar na janela, quebrando o vidro; mato o piloto e todo mundo aqui dentro, pulo do avião e, em seguida, 568 jacarés…
– Na mosca, quer dizer, na veia! Dormiu em segundos. Muito obrigado, doutor. Você merece palmas de pé. Eu já não sabia mais o que fazer com a maluca da minha mulher. Cheguei a pensar no divórcio na minha Lua de Mel. Agora, eu mereço tirar um cochilo…
– Senhores passageiros, em cinco minutos estaremos aterrissando em Dubai.
– Renato, meu bem, acorde. O avião já está taxiando na pista. Chegamos em paz e não houve turbulência…
– Mas no Atlântico não existe jacaré.

– O quê? O remédio que você tomou te fez dormir igual a uma pedra por mais 14 horas. Mal afivelou o cinto. Eu nem consegui te acordar para comer. Enquanto isso, eu li um livro; fiz três revistas de palavras cruzadas; assisti a dois filmes; pratiquei três alongamentos de cinco minutos para desinchar as pernas e ainda dormi 3 horas. Foi uma viagem tranquila, amor, nem parecia que estávamos voando. Vamos nos divertir muito na nossa Lua de Mel. Desafivele o cinto. Estamos em terra firme. E, na volta, você toma seu remedinho de novo, certo?

Imagem – https://pixabay.com/pt/photos/interior-avi%c3%a3o-cia-a%c3%a9rea-pessoas-2594469/

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.