O mito do fundador resiliente: como empresas brasileiras transformam dificuldades em narrativas de superação. Por Tatiane Baniski.

Da adversidade à lenda: a construção simbólica que transcende a história factual.

Quantas vezes nos emocionamos com a história de um empreendedor que, contra todas as probabilidades, ergueu um império? Narrativas quase cinematográficas nas quais obstáculos intransponíveis são vencidos por determinação e visão. Não por acaso, essas histórias nos cativam, pois seguem estruturas ancestrais que habitam nosso inconsciente coletivo.

No universo corporativo brasileiro, essas narrativas transcendem o relato factual, transformando-se em mitos fundadores; poderosas construções simbólicas que moldam culturas, inspiram colaboradores e seduzem consumidores. Não se trata de fabricações, mas de interpretações arquetípicas da realidade que conferem significado às organizações.

Após duas décadas transitando entre academia e mercado, observo a fascinante capacidade que temos, como comunicadores, de transformar a jornada de fundadores em narrativas míticas de resiliência. E o mais intrigante: como essas narrativas, quando autênticas, tornam-se ativos estratégicos inestimáveis.

A alquimia dos mitos organizacionais

O mito, em sua concepção antropológica, não é falsidade, mas uma narrativa simbólica que organiza e dá sentido à experiência humana, como nos ensina Joseph Campbell. No contexto organizacional, o mito do fundador resiliente incorpora elementos do arquétipo universal do herói: o chamado à aventura (empreendedorismo), os desafios (crises, concorrência), o mentor, a provação suprema (quase-falência) e o retorno transformado (sucesso e legado).

Esta estrutura narrativa é estrategicamente poderosa. Posicionar o fundador nesta jornada arquetípica estabelece conexões emocionais profundas. A empresa deixa de ser abstrata e torna-se personagem de uma saga humana. Contudo, existe uma linha tênue entre mitificação estratégica e fabricação desconectada da realidade. A primeira fortalece a identidade; a segunda destrói a confiança. Neste equilíbrio reside a arte do comunicador.

Luiza Trajano: a guardiã da cultura que transformou o varejo

“Comecei como balconista na loja dos meus tios”. Esta frase de Luiza Trajano estabelece o primeiro ato de sua narrativa mítica: origens humildes, trabalho árduo. A história da sobrinha que assumiu uma pequena rede de lojas e a transformou num gigante do varejo é contada e recontada com elementos arquetípicos.

Sua narrativa de “heroína improvável” (mulher, interiorana) desafia o estereótipo do CEO tradicional, incorporando o arquétipo da Guardiã: a que protege valores e cuida das pessoas. A comunicação do Magazine Luiza amplifica esta narrativa: o “Jeito Luiza de Ser” codifica um ethos mítico, e rituais internos reforçam o mito.

O impacto é mensurável no engajamento interno e na percepção externa de autenticidade e propósito. A mitificação ocorre não pela invenção, mas pela ênfase seletiva e interpretação arquetípica de eventos reais. É comunicação estratégica sofisticada.

Jorge Paulo Lemann: o mito da meritocracia personificado

Se Trajano é a Guardiã, Lemann personifica o Sábio Estrategista. Sua narrativa mítica (talento excepcional, formação de elite, fracassos iniciais, reconstrução, ascensão global) é distinta, mas igualmente poderosa. O interessante é como o mito transcendeu o indivíduo, tornando-se filosofia corporativa: o “jeito Garantia” (meritocracia, resultados, frugalidade) influenciou profundamente a cultura corporativa brasileira.

A comunicação em torno de Lemann é paradoxal: culto à personalidade de alguém avesso aos holofotes. Seus raros pronunciamentos são tratados como máximas; sua biografia tornou-se leitura obrigatória. A narrativa mítica virou benchmark de sucesso.

Novamente, não há fabricação, mas interpretação arquetípica. A comunicação estratégica seleciona e enquadra fatos reais numa narrativa coerente que ressoa com valores culturais específicos (meritocracia, excelência).

Nubank: reinventando o mito do disruptor

O Nubank oferece um estudo de mitificação em tempo real. A narrativa dos fundadores (Vélez, Junqueira, Wible) que desafiaram o sistema bancário brasileiro incorpora o arquétipo do “Rebelde com Causa”. A história é cuidadosamente estruturada: o estrangeiro frustrado, a executiva que arriscou, o tecnólogo experiente.

Elementos míticos são evidentes: desafio ao status quo, missão quase impossível, antagonistas poderosos (grandes bancos), vitórias improváveis. A comunicação amplifica a narrativa: o roxo vibrante contra cores institucionais, linguagem humanizada, marcos comunicados como vitórias coletivas. O impacto se vê no engajamento dos primeiros clientes, evangelizadores da marca. A empresa oferece participação numa revolução.

É interessante observar a evolução do mito conforme a empresa amadurece e precisa equilibrar o espírito revolucionário com responsabilidades institucionais.

A anatomia da resiliência mítica

Analisando estes casos, identificamos padrões na construção do mito do fundador resiliente no Brasil:

  1. Personalização da adversidade: obstáculos sistêmicos viram desafios pessoais.
  2. Brasilidade diferenciadora: características culturais como vantagens competitivas.
  3. Democratização do sucesso: êxito como fruto de qualidades cultiváveis.
  4. Missão transcendente: objetivo além do lucro.

Esta estrutura ressoa com valores culturais brasileiros e nossa relação com o empreendedorismo. Mas onde termina a interpretação legítima e começa a mitificação excessiva? A autenticidade é fundamental. O mito eficaz não fabrica realidade alternativa, mas oferece enquadramento significativo para experiências reais.

O comunicador como mitólogo corporativo

Que implicações isso traz para nós, comunicadores? Primeiro; reconhecer nossa responsabilidade como “mitólogos corporativos”, intérpretes que ajudam a construir significado. Segundo; desenvolver sensibilidade para identificar arquétipos autênticos nas histórias organizacionais. Terceiro; equilibrar mitificação com humanização – reconhecer vulnerabilidades torna a narrativa mais poderosa. Por fim, estar atento às transformações culturais; o mito eficaz evolui.

A jornada continua

Por que nos emocionamos com essas histórias? Talvez porque nelas vislumbramos possibilidades para nós mesmos ou porque ansiamos por coerência em um mundo fragmentado. Como comunicadores, temos o privilégio e a responsabilidade de trabalhar com esta matéria-prima simbólica. Podemos usá-la para construir conexões autênticas ou manipulações efêmeras.

Nos próximos artigos, continuaremos explorando as mitologias corporativas. Convido você a participar desta jornada. Afinal, toda boa narrativa precisa de testemunhas que a transformem em legado vivo.

Imagem: Freepik IA.

Tatiane Baniski é profissional com 25 anos de experiência em Comunicação e Marketing, com trajetória em liderança, consultoria e docência universitária. Mestre em Comunicação, pesquisa mitos, arquétipos e narrativas aplicadas ao branding. Atua na análise e construção de marcas por meio de estratégias de branding arquetípico, fortalecendo identidade, cultura e posicionamento organizacional.