Todos os anos, na primeira segunda-feira do mês de maio, acontece em Nova York o Met Gala, um evento organizado pela revista Vogue, nos últimos anos presidido pela editora-chefe da revista, Anna Wintour (Sim! A temida chefe – inspiração para o livro/filme O Diabo Veste Prada), em prol do Instituto de Moda do Metropolitan Museum of Art. Neste evento, diversas celebridades são convidadas a seguir um tema e a desfilar pelo tapete vermelho do evento com trajes exuberantes.
Neste ano, mais precisamente na semana passada, no dia 2, o tema sugeria uma revisitação à Era Dourada nos EUA. Muitos figurinos se destacaram, como o do atriz Blake Lively, que se desdobrava em um segundo vestido. Contudo, a celebridade que mais repercutiu nos dias seguintes foi Kim Kardashian.
Em uma entrevista, ainda na chegada, Kim revelou aos repórteres que havia perdido 16 libras – ou 7 quilos, para os usuários do sistema métrico – em 21 dias para poder caber em um vestido usado originalmente por Marilyn Monroe e que estava, até então, preservado em um museu de relíquias. A reação das redes sociais foi imediata. Tanto de apoiadores, mas especialmente de críticos. São sobre essas críticas que iremos falar hoje.
Na verdade, este é o propósito desta coluna. Conversar de forma crítica e consciente sobre o comportamento de celebridades, sempre pensando na responsabilidade que elas têm de disseminar uma certa narrativa, mas também levando em consideração o contexto, às vezes pouco conhecido, em que elas vivem. Minha intenção é que estes textos possam, de alguma forma, contribuir para o letramento midiático e para a maneira como consumimos entretenimento nos tempos atuais.
Neste caso da Kim Kardashian, a questão mais levantada foi a da apologia a distúrbios alimentares. A indústria da moda, e a cultural como um todo, sempre foi criticada por estimular a pressão estética, sobretudo nas mulheres. A obsessão pelo peso e pelo corpo ideais é uma questão que vem sendo descontruída de uns tempos para cá e, quando vemos pessoas fazendo de tudo em nome de uma dita “beleza”, a discussão rende.
Eu, definitivamente não sou a pessoa mais imparcial para falar deste tema. Sofro com a pressão estética desde que me entendo por gente. Meu corpo sempre foi um problema para minha família, pelas mais diversas razões. Aliás, só recentemente, e graças à educação que vem da mídia, é que descobri que gordofobia e pressão estética são duas coisas diferentes, embora uma cruze o caminho da outra com frequência. A Kim Kardashian também, definitivamente, não é a melhor para dar dicas de saúde. E nem Maíra Cardi, diga-se de passagem.
O que temos visto ultimamente são influenciadores com absolutamente todas as formações acadêmicas e experiências profissionais falando sobre um sem-número de dicas para emagrecer, ou manter a dieta perfeita, ou a rotina de exercícios ideal, menos os profissionais da saúde adequados. Que fique claro! Questões de saúde precisam ser tratadas com profissionais da saúde. Dúvidas sobre dietas devem ser tiradas com nutricionistas e, em casos mais específicos, com médicos nutrólogos especialistas.
As redes sociais precisam de uma regulamentação neste sentido. Mas, para além da boa vontade de CEOs e fundadores de plataformas, no Brasil, por exemplo, muitas dessas profissões que mencionei já são regulamentadas e, portanto, possuem um conselho profissional regulador. Estes poderiam atuar naqueles casos. Estamos com meio caminho andado por aqui e, se unidos, poderíamos pressionar por uma regra mais rígida.
Ao mesmo tempo, as celebridades são responsáveis por aquilo que publicam. Elas influenciam e exercem poder sobre seus fãs e seguidores, portanto, têm responsabilidade pelas mensagens que transmitem. Seria ingênuo, para dizer o mínimo, da parte de Kim Kardashian, achar que uma adolescente não teria acesso a este conteúdo e que, num caso de instabilidade psicológica, não recorreria a práticas compulsivas para perder peso. Aliás, o que vemos é o movimento contrário de algumas celebridades como Jameela Jamil, que criticou a família Kardashian em outras oportunidades, e Lili Reinhart. É com facilidade que encontramos perfis de mulheres que fizeram ou ainda fazem parte de Hollywood falando abertamente sobre anorexia, compulsão alimentar, ortorexia (obsessão pela dieta perfeita), entre outros temas.
Olhando inocentemente para a situação, parece que Kim estava tão imersa em sua verdade que não conseguiu ver o todo. Isto é, estava tão entusiasmada para desfrutar do prestígio de usar um vestido de Marilyn Monroe que apenas conseguia enxergar o desafio de fazê-lo. E que desafio! É evidente que o corpo das duas é bem diferente. Entre filtros de Instagram e truques de costura, a indústria da moda está repleta de artifícios para criar ilusões. É preciso ver isto com cautela. Enquanto há um desafio artístico proposto – e ele é bastante questionável – há também pessoas pouco instruídas para fazer esta leitura delicada. Falando do papel de uma assessoria de comunicação, neste sentido, é fundamental que a informação fique clara para os fãs e que a celebridade seja alertada sobre os riscos de seguir com uma narrativa destas.
Mas, numa visão crítica, Kim Kardashian é muito bem assessorada e podemos presumir que estas questões estavam claras para ela. Sua família é mestre em atrair visibilidade ou, se preferir, em elaborar PR stunts, estratégias de marketing, em atrair publicidade… Elas se envolvem em polêmicas o tempo inteiro como uma forma de sempre estarem relevantes e gerarem buzz. Tudo vai ao ar em seu programa de TV. A gravidez escondida de Kylie, as traições do marido de Khloé, o casamento conturbado de Kourtney, os feuds de Kanye West, ex-marido de Kim… Todas foram histórias muito bem planejadas. A mãe, Kris Jenner, sempre é descrita na mídia como uma grande estrategista de mídia. E, de fato, ela conseguiu traduzir em ações comerciais – e muito lucrativas – o que apenas alguns comunicólogos conseguiam descrever em termos científicos em uma época em que a rede social era rudimentar. Kris Jenner realmente conseguiu entender o que Henry Jenkins, por exemplo, denominou de storytelling transmídia.
Toda narrativa propagada pela família se entrelaça em várias mídias ao mesmo tempo. Lembro da época em que Khloé tinha um reality show no qual incentivava pessoas a perderem peso. Enquanto isso, em sua rede social, fazia propaganda de shake emagrecedor. O julgamento veio quando se começou a questionar se ela realmente utilizava o produto, ou se conseguiu perder peso com ajuda de sua equipe de profissionais gabaritados (personal trainer, nutricionista, endocrinologista, médico do esporte, chef de cozinha…).
Em todos os casos, voltamos sempre às mesmas perguntas: qual a mensagem que querem passar? Por que querem passar esta mensagem? Ao que parece, existe um ciclo puramente capitalista por trás. Elas recomendam um produto (ou hábito de consumo), recebem grandes cachês por isso, ganham a possibilidade de manter um padrão de vida inusitado, alcançam uma grande visibilidade e, portanto, geram engajamento para, então, serem procuradas por novos patrocinadores, para recomendarem mais produtos, ganharem mais dinheiro e perpetuarem o tal estilo de vida inusitado que gera visibilidade.
É preciso pensar se esta lógica consegue sobreviver por mais tempo. O que a comunicologia nos mostra é a possibilidade da construção de uma inteligência coletiva por meio do debate virtual feito por múltiplos participantes continuamente. Simultaneamente, nestas discussões, embora cada bolha defenda sua percepção da verdade, há uma parcela da comunidade que não apenas questiona, mas rejeita este modus operandi. As gerações mais novas mostram-se muito preocupadas em resolver os problemas das minorias sociais, da desigualdade de gênero, do racismo, do colonialismo, da emergência climática. Em resposta, algumas celebridades como Leonardo DiCaprio e Emma Watson já perceberam e optaram por usar sua visibilidade para “influenciar para o bem”, atuando como participantes dessas discussões.
É preciso lembrar que quando a família Kardashian conquistou fama o mundo era outro. Os presidentes eram outros, as políticas econômicas e internacionais eram outras, os dilemas não eram os mesmo de hoje e, portanto, as histórias que gostávamos de ouvir também eram bem diferentes. Contudo, achar que elas serão ostracizadas ou obrigadas a um rebranding confunde-se com a própria utopia. O que podemos fazer por enquanto é continuar participando ativamente do debate e escolhendo com cautela a quem daremos visibilidade. Definitivamente, consumir é um ato político. Assim, está nas mãos do consumidor decidir quais narrativas serão passadas adiante e quais ganharão um remake para os tempos modernos.
–
Imagem: Pexels / Sergio Souza.
–
Raquel da Cruz é mestranda do PPGCOM / Unesp e bacharela em Comunicação Social – Relações Públicas pela UEL. Concluiu sua especialização pelo GESTCORP da ECA-USP. Tem interesse em assuntos que envolvem relações públicas, celebridades, fãs e letramento transmídia.