NOVA COLUNISTA: Bruna Ramos da Fonte - Comunicação acessível e sem fronteiras.

Mas, afinal, o que é essa tal “literatura de verdade”?

Eu cresci em um bairro pobre de Santo André e, durante minha infância e adolescência, todas as viagens que fiz foram através dos livros que li. A partir do momento em que aprendi a ler e a escrever, os livros se tornaram meus melhores amigos e mestres com quem pude aprender tudo aquilo que a minha realidade não teria permitido que eu aprendesse de outra maneira. Foram os livros também que me ensinaram a sonhar e a acreditar em um futuro melhor, e eu devorava centenas de páginas com a sede e a urgência de quem queria dar uma verdadeira “Volta ao mundo em 80 dias” sem que para isso fosse preciso sair do lugar.

É claro que, como boa leitora, não demorou para que eu também começasse a enxergar na escrita a possiblidade de expressar tudo aquilo que via, vivia e sentia na minha própria vida. Aos nove anos de idade já escrevia as minhas primeiras crônicas e poesias; logo estava ganhando os meus primeiros concursos literários e vendo os meus textos serem publicados em antologias. Os anos se passaram e com eles vieram os meus primeiros livros, biografias, letras de música e roteiros; eu explorei – e sigo explorando – a escrita nas suas mais diversas possibilidades, mas nunca perdi de vista um princípio que me acompanha desde as primeiras linhas que escrevi num papel: escrever para todos.

Sempre estive comprometida em fazer uma literatura que pudesse ser alcançada por pessoas das mais diversas idades, classes sociais e realidades; nesse caminho, tenho a felicidade de receber constantemente feedbacks de leitores que me fazem constatar que estou tendo sucesso nessa missão. Ao longo dos anos, meus livros já foram adotados em escolas porque são acessíveis para crianças e jovens, já foram lidos por pessoas que nunca haviam lido nenhum livro inteiro por terem algum tipo de bloqueio com a leitura, e é saber dessas histórias o que faz com que eu me sinta realizada. Mas, ao longo da minha carreira também recebi muitas críticas e, por diversas vezes ouvi que aquilo que fazia não era “literatura de verdade”, justamente por eu me utilizar de uma linguagem simples e acessível, por me preocupar em trazer para o corpo do texto informações adicionais que possam complementar e auxiliar no entendimento daquele conteúdo que estou transmitindo. E é aí que eu pergunto: mas, afinal, o que é essa tal “literatura de verdade” da qual tanto ouvimos falar? Escrever de forma inacessível limitando assim o acesso ao conhecimento é fazer “literatura de verdade”?

Para mim, ser um bom escritor não é uma questão de usar palavras tão bonitas quanto complexas e desconhecidas para falar sobre coisas por vezes banais; aos meus olhos, ser um bom escritor é ser capaz de expressar conhecimentos ou sentimentos complexos e desconhecidos de maneira simples e acessível. Acredito que a simplicidade da verdade é o que realmente toca o coração, o que constrói pontes, cria e fortalece vínculos entre as pessoas. Ao longo da minha trajetória como professora, vi muitos alunos manifestarem o desejo de escrever somente para alcançarem o status da publicação de um livro e, para mim, esta nunca foi – e nunca será – uma boa razão para que se escolha fazer da escrita um caminho e uma missão de vida. Escrever é comunicar, promover a reflexão, é compartilhar ideias, pensamentos, sonhos e projetos; é puxar uma cadeira e convidar o leitor para sentar-se na mesma mesa, com ele aprender e para ele ensinar em uma troca singular.

Se engana quem acredita que seja fácil escrever de maneira simples; transmitir conteúdos, ideias e sentimentos complexos de uma forma acessível é algo que exige muito exercício tanto no campo da escrita quanto no campo do conhecimento. Assim se dá a escrita para mim: escrever é comunicar e se você comunicou algo que o seu público não foi capaz de compreender, inevitavelmente você falhou na sua missão de comunicar. Ao escrever, sempre parto do princípio de que o meu leitor pode não ter conhecimento prévio algum sobre aquele assunto, então ao construir meu texto não me deixo conduzir pela minha familiaridade com o tema, pois caso isso aconteça, corro o risco de escrever de maneira que somente quem tem conhecimento sobre aquele assunto será capaz de compreender. Tenho esta preocupação pois o meu objetivo é que o leitor se sinta convidado a explorar um mundo novo através dos meus livros e que, ao final daquela leitura, sinta-se culturalmente enriquecido e disposto a refletir e questionar em busca de aprender cada vez mais.

Infelizmente, o que constato – com muito mais frequência do que gostaria de admitir – na minha relação com críticos, editores e escritores é que ainda existe uma classe de pessoas que trabalha em prol de limitar o acesso aos livros e, consequentemente, ao conhecimento. Ainda é frequente nos depararmos com esse tipo de comportamento vindo de pessoas que, de maneira consciente, escolhem limitar a sua produção a um público com elevado nível cultural, social e econômico excluindo, automaticamente, o acesso de uma grande maioria.

Porém, como eu nunca perdi de vista a menina que conheceu o mundo e a vida através dos livros, é fundamentalmente para ela – e através dela – que escrevo para que crianças, jovens, adultos e idosos das mais distintas origens e realidades possam ler. Acredito na democratização do acesso – e essa democratização começa pela abordagem escolhida pelo autor ao escrever seu texto – porque livros mudam vidas, como mudaram a minha própria vida; eu só cheguei aonde cheguei porque tive acesso aos livros. O mesmo acesso que eu sonho que todos possam ter um dia.

Me lembro que, há alguns anos, assinei um contrato para a publicação de um dos meus livros e, para minha surpresa, quando recebi o texto final diagramado para aprovação, todas as notas explicativas e traduções de termos estrangeiros que incluí no texto haviam sumido. Pensando se tratar de algum engano, imediatamente liguei para o editor e ouvi então que ele mesmo havia retirado todas as notas do texto pois, segundo ele, seus leitores eram pessoas cultas e poliglotas, portanto não era necessário incluir tais explicações no livro. Eu fiquei indignada e respondi que não aceitaria publicar sem as minhas notas, pois a ausência de tais explicações afastaria leitores que não tivessem conhecimento prévio na área. Ele então cancelou a publicação do livro e me deixou “de castigo”, presa naquele contrato durante cinco anos sem que pudesse fazer nada com o material durante todo esse tempo.

Livros não foram feitos para enfeitarem estantes ou mesas de centro, muito menos para permanecerem guardados a sete chaves em bibliotecas escondidas dos olhos do mundo: livros foram feitos para serem lidos. Sem leitor não há motivo para que exista escritor, pois é na interação entre ambos que a mágica da leitura encontra terreno para acontecer. É certo que, aos olhos desta classe de pessoas que insiste em trabalhar em prol de elitizar e limitar o acesso a livros e saberes, aquilo que faço realmente não possa se enquadrar em um conceito de “literatura de verdade”. Se escrever para que pessoas de todas as idades, cores, etnias e classes sociais possam ler faz de mim uma má escritora e alguém que não sabe fazer “literatura de verdade”, pois bem: aceito e acolho a crítica com a felicidade de quem recebe um prêmio e sigo o meu caminho escrevendo para todos aqueles que tiverem interesse em ler aquilo que escrevo. Afinal, nunca tive a pretensão de produzir nenhum clássico da literatura: os meus livros são apenas convites para que o leitor viaje de mãos dadas comigo pelas páginas das histórias que eu tenho a compartilhar com ele.

Bruna Ramos da Fonte é biógrafa, escritora, fotógrafa ensaísta, professora e palestrante. Especialista em Leitura e Produção Textual com Aperfeiçoamento em Psicanálise Clínica, é criadora da sua própria metodologia no campo da Escrita Terapêutica. É autora de diversos títulos, incluindo “Escrita Terapêutica: um caminho para a cura interior” (Letramento, 2021) e as biografias de Sidney Magal e Roberto Menescal. Visite: www.brfonte.com