NO CORAÇÃO DAS COISAS - Uma pedra na mão. Por Mariana Machado de Freitas.

“Há na forma o mesmo que no fundo, mas naquela está manifesto, articulado, desenvolvido o que neste era tendência ou pura intenção”. (Ortega y Gasset, em “Meditações do Quixote”).

Na última semana, questionei: o que é uma pedra? Hoje retomo a investigação.

Tenho, aqui, uma pedra na mão para meditar sobre ela, devotar-lhe minha atenção integral (no máximo de integralidade que dispõe minha atenção, muitas vezes dissipada e borboleta).

A pequena pedra que observo possui uma largura, uma altura e uma profundidade, está delimitada no espaço por medidas, matemáticas, precisas. Mas ela também carrega consigo o tempo, a sucessão de eventos, o resultado da passagem de agentes sobre ela: traz marcas, rachaduras, arranhões da ação da chuva, do vento, do atrito com outras pedras ou metais.

Desde que surgiu ou que se desprendeu de uma rocha maior, muitos acontecimentos passaram por ela, atravessaram a sua passividade. Cecília Meireles, na “Valsa”, nos versos, diz: “Mesmo as pedras, com o tempo, mudam”.

Há cem anos, eu não estava aqui. Daqui a cem anos, tampouco estarei. Mas a pedra estava, está e estará. Todos os dedos no mundo não dão conta de contar seus anos idos ou vindouros. E, no entanto, constantemente a chuto como a máxima banalidade da existência. Ela, a testemunha muda e sem ciência.

Apesar de não ser imune à lei da impermanência, dentre todas as coisas que a minha experiência sensorial informa, através dos tempos, a pedra é a mais sólida. Daí resulta o seu simbolismo de firmeza, dureza, rigidez, base, segurança, permanência.

Posso dizer que a pedra é uma cristalização da ideia de solidez ou que a ideia de solidez a temos extraído das pedras? Não sei. Mas sei que a pedra é sólida, assim como a grama é verde.

Então, um transeunte qualquer, grita do meio da rua: “Mas e as pedras que esfarelam, acaso não são pedras? E a grama, acaso não tem, por vezes, uns tons amarelos, laranjas, marrons?”.

Meu próprio diário de bordo de experiência na Terra informa que uma pedra que esfarela não realiza a característica fundamental das pedras. Apresenta uma condição excepcional e, por esse motivo, é capaz de suscitar uma curiosidade maior do que o habitual. Pedras que esfarelam são menos funcionais do que as pedras que não esfarelam se o propósito for edificação, construção, contenção, por exemplo. Certamente uma pedra que esfarela é uma pedra, porém, não realiza o potencial da pedra. Uma pedra que esfarela está no caminho de ser areia, terra, não mais pedra. Assim como a grama. A grama queimada, com geada ou seca, por exemplo, pode apresentar outra cor diferente de verde. Mas todas essas circunstâncias são disfuncionais, são a grama verde sob efeito de agentes que lhe tiraram o verdor, fazendo com que esteja de outra cor, mesmo que, em essência, seja verde.

Em síntese, a pedra é dura. E dura. Dura tanto e é tao dura que serve até mesmo como arma. É muito conhecida a passagem bíblica onde uma lei rígida, sólida, baseada nas duas tábuas de pedra de Moisés ordena que mulheres adúlteras sejam apedrejadas, ao que Jesus Cristo, sem derrubar o pilar da lei e da justiça e, ao mesmo tempo, evidenciando o pilar da misericórdia ante a pobre pecadora, orienta de forma aparentemente neutra mas profundamente atuante na consciência dos envolvidos: “Aquele que dentre vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire uma pedra”.

A pedra é arma rudimentar, fatal. E também é obstáculo e armadilha de tropeço. Pedra no caminho, pedra no sapato, muro de pedra. Todas essas situações literais servem às figuras de linguagem.

Da pedra lascada extrai-se o fogo. E do fogo surge calor e luz. Quanto de valor pode gerar uma simples pedra tosca e opaca!

Nós, humanos, também temos nossa parcela de pedra. Os ossos do esqueleto são nossa pétrea base, sustentadora e sólida. Como todo mineral, são o que resta do corpo depois que as funções vitais e suas sobras se vão. O esqueleto é como a rocha que perdeu a vegetação e a presença animal.

Por fim, saindo do que meus olhos percebem na pedra, direi algo que a ciência me informa, sem que, contudo, eu veja. E admito, isso pode ser uma fantasia. Mas, até o momento, sou conduzida a crer que a pedra é constituída por um conjunto de minerais. E estes, constituídos por conjuntos de moléculas e, estas, de átomos. Ora, os átomos, pelo que me dizem, não são estáticos como pedras. Átomos são dançarinos como os sistemas solares, onde partes orbitam um núcleo. Então, ao olhar para esta pedra, concedo à minha imaginação a capacidade de adentrá-la com olhar de microscópio e visualizar a minúscula dança de partículas inteligentes e ordenadas. E, incrível, isso não tem nada de inanimado!

Te espero no próximo domingo para continuarmos nossa jornada ao coração das coisas! Boa semana!

Imagem: de minha autoria.

Mariana Machado de Freitas é gaúcha, Mestre em Artes Visuais, poetisa, escritora e buscadora da essência e do coração das coisas.