Essa semana retornei ao coração de um livro que por muitos anos foi o meu preferido (talvez ainda o seja): ‘A Insustentável Leveza do Ser’, do tcheco Milan Kundera. O livro, lançado em 1984, mistura reflexões do autor com a trama paralela vivida por casais, tendo por pano de fundo a Primavera de Praga.
Quando escolhi este livro para ler pela primeira vez, aos dezoito anos, não sabia nada de antemão sobre o autor ou a história. Fui atraída pelo título: como poderia haver uma leveza insustentável como estava sendo sugerido ali? Existem pesos leves e levezas pesadas? Após vinte anos, quando estendo meu olhar para o horizonte, continuo perguntando isso. E ainda me encantam as reflexões, muito atuais, que ele propõe. Como essa que abre o livro:
‘O eterno retorno é uma ideia misteriosa de Nietzsche que, com ela, conseguiu dificultar a vida a não poucos filósofos: pensar que, um dia, tudo o que se viveu se há-de repetir outra vez e que essa repetição se há-de repetir ainda uma e outra vez, até ao infinito! Que significado terá este mito insensato?
Se cada segundo da nossa vida tiver de se repetir um número infinito de vezes, ficamos pregados à eternidade como Jesus Cristo à cruz. Que ideia atroz! No mundo do eterno retorno, todos os gestos têm o peso de uma insustentável responsabilidade. Era o que fazia Nietzsche dizer que a ideia do eterno retorno é o fardo mais pesado (das schwerste Gewicht).
Para ele, o universo estava dividido em pares de contrários: luz-sombra; espesso-fino; quente-frio; ser-não ser. Considerava que um dos pólos da contradição era positivo (o claro, o quente, o fino, o ser) e o outro, negativo. Esta divisão em pólos positivos e negativos pode parecer de uma facilidade pueril. Excepto num caso: o que é positivo: o peso ou a leveza?
(…)
Ao contrário de Parménides, parece que Beethoven considerava o peso como algo de positivo. Der schwer gefasste Entschluss, a decisão gravemente pesada está associada à voz do destino (Es muss sein!); o peso, a necessidade e o valor são três noções íntima e profundamente ligadas: só é grave o que é necessário, só tem valor o que pesa.
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‘Quando o coração falou, não convém que a razão levante objeções. No reino do kitsch, exerce-se a ditadura do coração.
O kitsch faz-nos vir duas lágrimas de emoção aos olhos, uma logo a seguir à outra. A primeira diz: Que coisa bonita, crianças a correr num relvado! A segunda diz: Que coisa bonita, comovermo-nos como toda a humanidade se comove quando há crianças a correr num relvado!
Só esta segunda lágrima é que faz com que o kitsch seja o kitsch.’
(…)Quando falo aqui na coluna sobre o ‘coração das coisas’, pode ser que num primeiro momento soe como sentimentalismo, e talvez a pessoa se sinta compelida a semicerrar os olhos. Muitas vezes nós semicerramos os olhos como um gesto involuntário ao falar de amor e do coração. E, por que se fala de amor com olhos semicerrados? É a segunda lágrima que rola dizendo: que coisa bonita comovermo-nos como todas as pessoas boas se comovem quando se fala de amor e do coração.O problema do kitsch não parece ser aquela camada de hipocrisia social que protege os demais de nossos dramas e maus humores; nem a diplomacia salutar que permite que a sociedade funcione a despeito dos nossos gostos pessoais. Qualquer pessoa que deseje dizer verdades o tempo inteiro, em pouco tempo não terá mais interlocutor que a escute e a benesse de sua verdade ao mundo se perde. Ser verdadeiro, às vezes, é calar diante de quem não tem condições de entender. Então, o problema do kitsch é mais da ordem do indivíduo, na internalização do kitsch como uma verdade ‘comprada’. É, por exemplo, ‘se emocionar com o fato de se emocionar’, porque ‘há um código social implícito de que as pessoas que são boas se emocionam com tal ou tal coisa’.
E então, o que acontece a seguir? Nossas emoções são facilmente conduzidas pela propaganda. Levantamos bandeiras mil, hashtags, aderimos a movimentos cujas raízes ignoramos porque trazem consigo palavras de ordem que são boas, positivas, que apontam para um futuro melhor e nos emocionamos diante disso. E nos emocionamos por nos emocionar diante disso. Então, aderimos. Aderimos ou nos aderem? Se não conseguimos diferenciar dentro do nosso coração o que é kitsch e o que é verdade, é mais provável que sejamos aderidos aos movimentos, como poeira cósmica arrastada por um rabo de cometa que quanto mais inflado de opinião pública for, mais exercerá seu poder gravitacional sobre nós, perdidos que estamos na superficialidade do chavão e da boa intenção. Não foi assim com aquele movimento que se constituiu num verdadeiro circo de horror infernal e que começou bradando: liberdade, igualdade e fraternidade?
Eu fico aqui refletindo com meu coração ambíguo, oscilando entre o que são levezas pesadas e o que são pesos leves.
Bom domingo e até a próxima semana!
Imagem: site medium.com/revista-