União Sorviética
– Papai, papai, olha! Uma sorveteria nova!
Passeando com a família no calor tropical do verão, aquela indicação da pequena Natasha parecia uma boa opção.
Sorveteria sempre remete a climas gelados: Nevaska, Alaska, Nevada, Sibéria. Pois aquela tinha uma fachada branca e cinza com um gritante letreiro em vermelho: União Sorviética.
Embaixo havia uma sigla U.R.S.S. com a explicação depois: União Refrescante dos Sorvetes Saborosos.
Maria e Alexandre entraram com Natasha e o pequenino Ivan. A decoração era temática e deslumbrante em tons frios, indo do branco ao cinza e do azul ao vermelho. Ar condicionado no último e adereços soviéticos como capotes, neve caindo do teto e estátuas de Lenin de chocolate. Nas janelas havia elegantes e trabalhadas cortinas de ferro que podiam ser fechadas em caso de chuva (ou acidente nuclear, pensou Alexandre).
– Olá, camaradas! Sejam bem vindos à União Sorviética! Dominando o mundo, um sabor a cada dia!
– Leonid! O que você faz aqui? Já se aposentou da Universidade?
– Sim, Alexandre! Me cansei daquele palavrório sem fim nas reuniões e no sindicato e decidi partir para a ação. Aproveitei a aposentadoria para por a mão na massa. Finalmente iremos conquistar o mundo, primeiro de um modo capitalista, mas como um estágio transitório, como predisse o Karlinhos!
– Quer dizer que aquela venda das camisetas com a cara do Che Guevara já era isso?
– Sim, uma “alavancagem”. Triunfo inicial do Capital sobre a Comuna já que todo conceito e estética servirá para o propósito banal de ganhar dinheiro. Nada além do que já foi feito estampando-se a carantonha do Che Guevara em camisetas e vender para a garotada. Heresia das heresias! Mas, Camarada Alex, o contra ataque virá! Ah… virá!
Os sorveteiros estavam uniformizados como soldados soviéticos. As garçonetes de botas longas, casacos e minissaia por baixo dos capotes deixando entrever os joelhos. Havia até uma russa negra!
Percebendo o olhar do ex-colega (ou camarada) Leonid já tinha o discurso ensaiado.
– É a cota, camarada Alex. No final tudo será conquistado pelo Partido e teremos que garantir a renda mínima para todos, mas todos virão gastar seus rublos com o próprio Partido. então…
E fez aquele olhar de quem já sabe onde tudo irá acabar.
– Papai, repare! Olhe só as colherzinhas!
– Sim, menina, as colherzinhas também têm um toque especial. Você pode escolher a colherzinha do campesinato (em formato de foice) ou a colherzinha proletária (em forma de martelo).
Natasha não entendeu muito bem e pegou uma de cada para levar ao Ivanzinho.
– Os sabores são fantásticos – comentou Maria com o cardápio aberto sobre a mesinha: – Sorvete de Kremlin com Tchokolatsky, Soviet de Frutas Vermelhas, Flocks de Trotski, Maracujá Maiakovski, Cerejas sanguíneas com Rasputin de cascas de limonski, Abacaxivsky Imperial…
– Sim uma de nossas criações. O abacaxi vem com a coroa cortada e usamos o próprio corpo da fruta como taça! Além dos sabores, temos os tamanhos especiais: Sputnik (para crianças: vem servido numa tacinha em formato de espaçonave – Te cuida, Mc Lanche Feliz, hein, Alex, vamos p’ra cima desses capitalistas desalmados!). Noites Brancas (Amoras Negras em Creme Russo servido na gigantesca taça São Petersburgo), Sochi Côco com Cookies. Minsk Shake. A coqueluche do momento é o Bolso-Putin (feito com Leite Condensado batido com Vodka).
La piece de resistance é o Sorviet Supremo com 17 sabores (um para cada república), servido na bandeja Comintern. A bandeja vai para as mesinhas de negociação levadas pelas garçonetes em desfile e então cada cliente avança em busca do território gelado do inimigo a sua frente. Diz a lenda que nenhum grupo conseguiu jamais acabar com a Cassata de Nata da Sibéria! Recomendo muito para famílias e grupos!
A família acabou escolhendo o Sorviet Supremo, apesar do Alex dizer que os sabores da Estônia, Letônia e Lituânia (os mais caros) eram muito pequenininhos em quantidade.
– Que podemos fazer – contrapôs Leonid – Expansão territorial sempre! – E saiu estrondando uma gargalhada. – Depois passe no Politburo para acertar a conta. Lembre-se, só aceitamos Rublos. Nem venha dizer que isso é um roublo perto da fundação de um Banco! – E de longe a família ouvia a estrondosa gargalhada.
O ambiente da União Sorviética era dividido em dois: Crime & Castigo. No setor Crime o cliente pega o sorvete. No setor Castigo ele paga a conta.
As garçonetes vieram em desfile com a bandeja do Sorviet Supremo e entregaram na mesinha. Natasha avançou na hora para pegar a bandeirinha da URSS fincada sobre a Moscou gelada.
– O que é essa ameixa preta aqui na Ucrânia?
– Deve ser a usina de Chernobyl.
Quando Alex ia pegar uma colherada do Tchokolatsky do Cazaquistão (o território que ficou mais perto dele) as cortinas de ferro se fecharam e uma sirene estrondosa soou…
Era um sonho. Estava na cama com o despertador tocando. Não devia dormir com fome e após ver o noticiário da guerra com os tanques entrando na Ucrânia. Coçou os olhos e calçou o chinelo. Natasha entrou no quarto cantando a Internacional e balançando a bandeirinha da União Sorviética. Ivanzinho chorava porque a colherzinha de foice havia quebrado.
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Cuiabá, 25 de fevereiro de 2022.
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Aclyse Mattos é graduado em Administração de Empresas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com especialização em Propaganda e Marketing pela Escola Superior de Propaganda e Marketing – RJ, mestrado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e doutorado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. É escritor, poeta e professor da Faculdade de Comunicação e Artes da UFMT.