NO CORAÇÃO DAS COISAS - A poeira da retina. Por Mariana Machado de Freitas.

‘O que nos torna humanos é, segundo Vladimir Nabokov, a capacidade de nos assombrarmos diante de coisas pueris ou aparentemente insignificantes – porque nelas encontramos a verdade ou parcelas da verdade’. (Rodrigo Gurgel, no seu canal do Telegram, em 08/05/2020).

Estive ouvindo uma das maravilhosas aulas de literatura do professor Rodrigo Gurgel, em que ele falava da ‘atenção para a realidade’ reivindicada por Vladimir Nabokov, não como um realismo rasteiro e aprisionado aos cinco sentidos, mas como uma oportunidade de ultrapassar a banalidade do olhar que lançamos ao real.

Pergunto-me: afinal, a realidade cotidiana é banal ou é banal o olhar que deitamos sobre ela?

Na aula, ouvi do professor, como quem ouve uma promessa, que ‘quanto mais nós olhamos para a realidade, mais ela será nova, mais a realidade vai ser viva, mais ela vai ser inesperada e, também, surpreendente’.

Bem, nos textos das duas últimas semanas, aqui nesta coluna, desafiei-me a olhar para uma simples e bruta pedra, mas com a abertura perceptiva e a curiosidade ativa, ou seja, lançando um olhar sem distração.

Não é fácil a manutenção de um estado de atenção plena. Lembro-me que, há uns dez anos, ao cumprir os trajetos de ida para o trabalho e de volta para casa, absolutamente nada parecia ter valor. Entre casas, árvores, postes, lixeiras, canteiros, calçadas, avenidas, carros e cães, eu ia arrastando meu olhar sépia de desgosto, como se tudo fosse já conhecido e tedioso.

O mesmo não acontecia quando eu viajava para outra cidade… como Montevideo, por exemplo. Lá, onde eu era uma estranha numa cidade estranha, sem nenhuma pretensão de acertar sequer a língua, tudo era novidade: o banco da praça; o arabesco das grades; o bronze dos heróis com seus cavalos; as livrarias abrindo sobre as calçadas a sua bocarra cheia de livros, onde um viajante poderia ser tragado por horas; o Rosedal como um templo de amor e contemplação convidando a esquecer da avenida abarrotada de velocidade a poucos metros dali; a imensa Rambla a dividir a cidade da areia, do rio, do mar; a areia invadida por idosos tomando Sol em cadeiras de abrir, ruminando algum desgosto político quebrado apenas pela correria das crianças enfarofando o vento…

Mas a magia do olhar não acontecia somente com cidades turísticas. Nas cidades vizinhas de onde eu morava, onde não havia nenhum alarde de atrativo, meu olhar também mantinha-se disposto, desperto, ativo, curioso e vivaz. E assim como estava o meu olhar, a realidade também se mostrava vivaz. Menos para a maioria das pessoas que cumpriam seus trajetos ao trabalho, ao bar, às compras, à Igreja, à casa da comadre, que olhavam para a realidade através de uma lente opaca, assim como era a lente do meu olhar na minha cidade: poeirenta, mofada, tediosa, sabedora do entorno de antemão.

Foi assim que aprendi que a banalidade está no olhar sem valor que lançamos, julgando por antecipação a realidade como se ela não tivesse graça suficiente. Se sabemos por antecipação, projetamos a imagem que temos na memória sobre a realidade, sem dar espaço para receber dela uma informação atualizada e vívida.

Por mais que já se tenha experimentado uma ou várias vezes esse estado perceptivo de ‘saber sem saber’, de autêntico brilho no olhar, tudo isso é de cultivo. Necessita de choques de percepção, um esforço e uma entrega, um ímpeto e uma passividade.

Se não garimpamos o ouro no cotidiano e se a realidade, o entorno, não tem valor, assim estão nosso olhar, alma e trajetória de vida.

A chama da realidade corresponde a uma primeira faísca lançada com o olhar e isso exige atividade, vontade, ação. O fogo atrai o fogo, como o ouro atrai o ouro. É preciso ter para encontrar, ter ao menos um pouco.

Convém esclarecer, também, que não estou falando de um olhar alegre e afetado, disposto de antemão a achar tudo lindo. Isso soa muito falso e é ainda a projeção de uma expectativa. Me parece que o único caminho para encontrar a eterna novidade da realidade é renascer o próprio olhar a cada instante.

Deixo contigo um poema instigante, do poeta italiano Eugenio Montale:

‘Talvez uma manhã andando num ar de vidro,

voltando-me, verei cumprir-se o milagre:

o nada às minhas costas, detrás de mim

o vazio, com um terror de bêbedo.

Depois como numa tela, acamparão de um jato

árvores casas colinas para a ilusão costumeira.

Mas será tarde – e eu partirei calado

entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.’

(Tradução: Geraldo H. Cavalcanti).

Boa semana!

Imagem de autoria própria: Rosedal del Prado, Montevideo, Uruguai, 2010.

Mariana Machado de Freitas é gaúcha, Mestre em Artes Visuais, poetisa, escritora e buscadora da essência e do coração das coisas.