Na economia, o invisível tem cor. Por Bruna Cataldo.

Nas últimas semanas, a questão do racismo ganhou as ruas e as redes sociais. Nesse contexto, seus reflexos sobre a economia (enquanto sistema e profissão) foram inevitáveis. Não sou a pessoa mais qualificada para falar sobre isso por diversos motivos. O mais óbvio de todos é que sou branca. Dito isso, aprendi que silêncio é cumplicidade e, então, vou aproveitar o espaço que tenho para fazer pequenos apontamentos: que a forma como lidamos com a economia torna invisível questões de raça e que a estrutura elitista e branca da profissão reforça o problema. As análises são curtas, apenas colocam luz na questão, porque ao final dou referências de pessoas que realmente têm propriedade e voz no tema e devem ser acompanhadas. Sendo assim, o texto é menor e mais simples. O objetivo é apenas dar um contexto para poder divulgar o trabalho de quem realmente deve ser ouvido sobre. Assim, não me mantenho em silêncio, mas evito ocupar um debate que não é meu.

Um dos motivadores para o tema foi a entrevista do professor Silvio Almeida, no Roda Viva do dia 22/06/2020. Dentre falas apontando racismo estrutural, a importância de manifestações culturais e religiosas para a afirmação do movimento negro e a forma com a qual os diferentes espectros da política lidam com a questão racial, o tópico que se destacou e monopolizou o debate foi uma fala sobre economia.

No caso, Silvio afirmou que políticas de austeridade são racistas. Foi suficiente para uma participação tão rica ser reduzida a esse ponto entre os economistas. Só que, afinal, que tipo de debate essa frase evidencia? Ao meu ver, o mais importante é a invisibilização da população negra nas decisões de política, sendo que são a maior parte da população e os mais afetados pela desigualdade. Em contexto tão negativo, é um testamento do racismo da sociedade e da falta de representatividade na profissão que políticas possam ser debatidas sem o impacto racial ser explicitado. O mais importante não é concordar ou não com Silvio Almeida sobre austeridade, é que a política – como qualquer outra – seja aplicada sem que a questão racial apareça no debate entre defensores e críticos. Quando aparece, não costuma partir dos economistas.

Como mostram os dados do IBGE (2019), não é razoável fazer política pública sem recortes raciais explícitos. Negros são 55,8% da população, mas ocupam apenas 29,9% dos cargos gerenciais e 24,4% das cadeiras da Câmara. 32,9% estão abaixo da linha de pobreza frente a 15,4% dos brancos; e taxa de homicídios por 100 mil habitantes é quase o triplo. O mesmo se repete em dados de mercado de trabalho: negros estão mais na informalidade em todas as regiões, com mulheres negras tendo os piores resultados. Considerando que a desigualdade brasileira – que chega a ser reconhecida por economistas – afeta desproporcionalmente a população negra, qualquer política para combatê-la ou que possa agravá-la deveria ter análise de recorte racial. Ao tornar essa discussão invisível, o problema é reforçado e o privilégio branco mantido porque reformas nunca chegam a dar conta das estruturas racistas do país. Ao tornar invisível o recorte racial de políticas econômicas e sociais, tem que ficar claro que é o negro que estamos apagando.

O problema aparece inclusive em políticas menos óbvias que as de mercado de trabalho e transferência de renda. A política de inclusão no ensino superior é um exemplo. Na última década houve um aumento de acesso de negros no ensino superior com políticas como cotas, FIES e PROUNI. No entanto, a falta de discussões sobre evasão, permanência, moradia estudantil e qualidade do ensino – e a falta de recorte racial nelas – dificultam que o aluno que entrou na faculdade chegue a terminar o curso. Caso consiga, os benefícios esperados de renda podem não ser conquistados por conta da baixa qualificação adquirida. Isso é um problema para quaisquer beneficiários, mas é potencialmente pior para os negros. Também é relevante que estão entrando na universidade, mas é necessário discutir em que cursos e o que isso representa em termos de mobilidade social. Não é possível lidar com essas diferenças sem tratar raça horizontalmente e com uma visão estrutural para interpretá-las. Alguns dos assuntos economistas chegam a cobrir, mas seguem criticados por não enxergarem de forma mais ampla a gravidade da questão no contexto social. O ponto é: o entendimento de que o racismo está na estrutura da sociedade e é componente fortíssimo da nossa desigualdade deveria impor às discussões socioeconômicas um aprofundamento maior da questão em todos os níveis, indo além da mera inclusão em indicadores e métricas estatísticas. Independente de entender políticas de austeridade como racistas ou não, a fala de Silvio Almeida mostra, portanto, uma questão importantíssima: é preciso colocar a raça na narrativa econômica porque os efeitos serão sentidos pelos negros quando ela não for feita.

E a profissão economista? No meio de toda a situação dos protestos, ganhou notoriedade o caso do editor de uma das maiores revistas científicas econômicas que minimizou o movimento ‘Black Lives Matter’ com falas extremamente problemáticas e racistas. Harald Uhlig chegou a ser afastado do cargo, mas foi reinstaurado em seguida. O acontecimento levantou questões sobre a baixa representatividade de negros na profissão e o significado disto sobre a capacidade de publicação de trabalhos sobre raça, pretensões de carreira dos poucos negros já na profissão e o apontado nos parágrafos anteriores: a omissão completa ou parcial do elemento raça das decisões de políticas públicas com reflexos econômicos. Pensando sobre as perspectivas futuras da profissão no Brasil, o cenário é problemático. Mesmo com políticas de acesso, menos de 1/3 dos estudantes são negros. Mulheres negras mal passam de 10%. Isso reforça a necessidade de um debate em nível de curso de políticas de acesso ao ensino superior. Se a economia é elitista e branca hoje, ela seguirá sendo pelos próximos anos se não houver uma política séria nesse sentido. E se isso acontecer, seguiremos fingindo que os impactos socioeconômicos de políticas serão distribuídos de maneira uniforme entre pessoas de um mesmo grupo de renda quando é provável que não seja o caso.

Essa breve introdução teve apenas o intuito de apresentar o que vou colocar abaixo: uma pequena lista de iniciativas, grupos e pessoas negras que combatem o racismo e de economistas e outros profissionais negros e suas respectivas especialidades já que a inserção no debate não pode ser dar apenas pelo tópico do racismo. Tudo que escrevi até aqui é introdução porque espero honestamente que você, leitor, procure os trabalhos dessas pessoas. Precisamos ler, consumir e divulgar trabalhos de pessoas negras. Todos os indicados são amplamente conhecidos e de sucesso, não precisam da minha divulgação. Não tenho essa pretensão. No entanto, como mulher branca do topo da distribuição de renda brasileira, eu não conhecia vários até pouco tempo atrás. É muito fácil ficarmos na nossa bolha de conteúdo e esse pode ser o caso de outros iguais a mim. Só que é conteúdo deles que temos que consumir sobre o tema, não o meu, então lá vai:

1 – O próprio professor Silvio Almeida (@silviolual): filósofo e jurista que escreveu, dentre outros trabalhos, o livro ‘Racismo Estrutural’.
2 – Portal Geledés (https://www.geledes.org.br/geledes/o-que-fazemos/): como apontado na descrição do site, ‘O Geledés é uma organização da sociedade civil que se posiciona em defesa de mulheres e negros por entender que esses dois segmentos sociais padecem de desvantagens e discriminações no acesso às oportunidades sociais em função do racismo e do sexismo vigentes na sociedade brasileira’.
3 – Nath Finanças (@nathfinancas): estudante de administração, youtuber e colunista do El País que fala de finanças pessoais para pessoas de baixa renda.
4 – Rede de economistas pretas e pretos (@repp_economia): grupo criado a partir do reconhecimento da falta de representatividade na economia.
5 – Mundo Negro (https://mundonegro.inf.br/): como apontado na descrição do site, ‘O Mundo Negro foi um dos primeiros portais feitos para negros no Brasil. No ar desde 2001 ele é um dos principais sites com conteúdo exclusivo para negros, produzido por jornalistas, sendo espaço de notória credibilidade’.
6 – Ideias Negras: podcast de entrevistas com personalidades negras sobre assuntos variados.
7 – René Silva (@eurenesilva): criador do jornal Voz das Comunidades (https://www.vozdascomunidades.com.br/).
8 – Angu de Grilo: podcast das duas jornalistas mãe e filha Flavia Oliveira e Isabela Reis.
9 – Thiago Amparo (@thiamparo): advogado, professor e colunista da Folha de São Paulo.
10 – Ellora Derenoncourt (@EDerenoncourt): pesquisadora na Universidade de Princeton, doutora por Harvard (especialista em desigualdade e mercado de trabalho).
11 – Sandy Darity Jr (@SandyDarity): pesquisador/professor da Universidade Duke (especialista em estudos afro-americanos e políticas públicas).
13 – Fanta Traone (@TheFantaTraore): economista do Federal Reserve (especialista em uso de dados para desenvolvimento de estratégias organizacionais para o Banco Central americano).
14 – Jevay Grooms (@jevaygrooms): professora da Universidade Howard (especialista em economia da saúde/saúde mental/uso de substâncias).
15 – Ana de Menezes (@ana_demenezes.): Doutoranda da London School of Economics (especialista em impactos da mudança climática na saúde).
16 – Sylvia Santana ( @synthiasantana): Doutora pela FGV/SP e tecnologista em informações geográficas do IBGE.
17 – Thais Custodio (@athaisdejesus): Mestranda pela UFRRJ e pesquisadora na Redes da Maré.
18 – Marcelo Paixão (@MarceloJPPaixao): Economista e doutor em sociologia, professor na Universidade de Austin (coordenador do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais).

A lista certamente continua, mas é consumindo conteúdo de um que chegamos aos de outros. Recomendo fortemente jogar os nomes no Google, olhar os perfis do Twitter, ler e ouvir o que tiver de conteúdo produzido. Informe-se! O invisível não é mais uma opção, nunca deveria ter sido.

Bruna Catado é economista pela UFRJ e mestre e doutoranda em economia pela UFF. Suas pesquisas atuais são na área de educação e economia criativa, com enfoque em políticas públicas. Pesquisou e, eventualmente, colabora em trabalhos de economia da inovação. É defensora de uma abordagem mais interdisplinar da economia.