MUNDO AFORA - 'Black Lives Matter'. Por Gabriela Moliver.

As descobertas europeias, datadas a partir do século XIV, apresentaram à Europa um novo continente. Na América Latina, as colonizações por exploração definem, até os dias de hoje, as lutas de um povo não só em relação às questões econômicas e políticas, mas também na defesa de suas identidades raciais e culturais perante a opressão de outros Estados.

Na América Anglo-Saxônica, as colonizações tomaram um rumo diferente: os ingleses vieram para povoar as terras norte-americanas e canadenses, ao invés de apenas explorar seus territórios. O início do tráfico de negros vindos da África não mudou essa definição e, infelizmente, todos nós sabemos o porquê. O intuito europeu, neste sentido, diz respeito apenas aos brancos. Os negros escravos não tinham os mesmos direitos à colonização por povoamento. E essa atitude em separar negros e brancos na ‘América’ não ficou para trás. Ela perdura até hoje – e de forma bastante violenta.

Os afro-americanos – termo que passou a ser utilizado a partir da década de 80, começaram a ser traficados da África para a América do Norte e Caribe entre o século XV e XVIII. Nos dois primeiros séculos, as condições de vida africana no país eram similares a dos ingleses: muitas vezes precisavam trabalhar de graça em troca de alojamento e comida. O início da escravidão nos EUA começou a ganhar força a partir do século XVIII. Nesse período, a população norte-americana já compunha, em sua maioria, de ingleses, e em seguida de negros, totalizando 3,5 milhões de escravos nos anos de 1860 e 500 mil afro-americanos livres. Essa libertação estrondosa dos negros escravos só foi possível graças à Guerra Civil Americana, quando os americanos do norte ganharam a batalha e o presidente Abraham Lincoln assinou a Proclamação de Emancipação declarando livres todos os escravos do país.

A vida dos negros após a abolição da escravatura

A Décima Terceira Emenda de 1865 pôs fim à escravidão nos Estados Unidos da América. Apesar desta emenda significar politicamente a liberdade dos negros, a segregação ganhou ainda mais força na sociedade norte-americana. Ainda mais porque ser livre significava começar uma nova vida, sem nada no bolso e com os estigmas raciais já presentes entre brancos e negros.

No período de pós-emancipação, houveram construções e ideais de uma sociedade criada apenas para os negros frequentarem, tais como igrejas, bairros, comércios, etc. Apesar das dificuldades, das promessas de mudança de vida, a pobreza entre os afro-americanos era gritante, principalmente entre os negros habitantes do sul do país. Assim como no Brasil, não havia um plano de ingressa-los como parte da sociedade para usufruírem dos direitos básicos que todos os outros cidadãos tinham direito, como educação e saúde, por exemplo.

Não obstante do desejo de construírem algo para si e suas próximas gerações e com o crescente descaso das autoridades governamentais, os afro-americanos criaram para si locais aos quais eles poderiam compartilhar aprendizados, como as igrejas, por exemplo. As igrejas tornaram-se peças culturais centrais onde não se eram compartilhados apenas cultos religiosos, mas também um censo comunitário de inclusão, socialização e política.

Além das igrejas, os afro-americanos também encontraram na educação uma grande paixão, ao qual fosse possível compartilhar conhecimento em todos os níveis de educação. Ainda no século XIX foram criados centros universitários como o Fisk University e a Howard School. Em 1865, a Freedmen’s Bureau – uma agência governamental criada para ajudar ex-escravos, supervisionou mais de 3.000 escolas em todo o sul dos EUA, auxiliando na educação e saúde.

Durante o período de reconstrução das leis norte-americanas (1865-1877), o Congresso aprovou leis que garantiam os direitos políticos civis da população afro-americana. A aplicação dessas leis foram cruciais para que os negros pudessem se inserir na comunidade como cidadãos de direitos.

KKK – Os supremacistas brancos

Apesar do árduo trabalho do Congresso e das lutas afro-americanas para se livrarem finalmente dos terríveis tempos de escravidão, o cenário mudou completamente com a aparição de um grupo supremacista branco denominado como KKK (Ku Klux Klan).

Os líderes e seguidores do KKK eram completamente contrários a ideia de uma união entre negros e brancos, assim como compartilharem dos mesmos direitos e lugares na sociedade. O grupo surgiu com o intuito de manter a instabilidade econômica negra e garantir a superioridade racial branca, sempre agindo com brutalidade e violência.

Mesmo com o governo do Presidente Ulysses S. Grant em criminalizar os atos do KKK, os Klan voltaram com toda força na década de 1920 e 1950 – contando com mais de 4 milhões de membros. O KKK ainda existe até hoje.

A luta por direitos civis

No auge da propagação de ódio e violência contra os negros nos Estados Unidos, na segunda metade do século XX, surgiram vários movimentos que marcaram a história das lutas civis afro-americanas.

Um dos movimentos mais expressivos na década de 50 foi a Conferência da Liberdade Cristã do Sul – Southern Christian Leadership Conference. O movimento surgiu em Montgomery, Alabama, por Martin Luther King Jr.

Luther King se tornou uma das pessoas mais influentes na luta contra o racismo em toda a história da humanidade. Seu famoso discurso ‘Eu tenho um sonho…’ na esplanada do Monumento à Washington, simboliza a força que as suas palavras têm até nos dias de hoje.

Seguido do poderoso movimento iniciado por Martin Luther King, surgiram outras organizações como o nacionalismo separatista de Malcom-X – que pretendia criar um Estado Negro separado do resto dos EUA. Além do movimento Black Power de Richard Wright, surgiu também um dos mais emblemáticos – o Partido dos Panteras Negras. Uma organização de resistência policial com tendências radicais e ideológicas.

Os dias atuais

Decidi pular quase 60 anos da história dos afro-americanos dos anos 50 para cá, para pegar o gancho do Partido dos Panteras Negras com a atual situação em que os EUA se encontram. E é a partir daqui que será possível entender melhor porque a morte de George Floyd teve tamanha repercussão.

Os primeiros parágrafos foram uma introdução ao tema. O racismo não é uma tendência que surgiu no século XXI ou com o surgimento da internet. O abuso contra o povo negro existe por séculos. A partir daqui, gostaria de salientar a importância de entender esse cenário e o quanto isso significa em termos de estruturas sociais, a tão estúpida meritocracia e a desmoralização do movimento negro por governos populistas e fascistas.

Há duas semanas atrás – mais precisamente no dia 26 de maio de 2020, um homem negro foi abordado por policiais na cidade de Minneapolis, nos EUA. Sem apresentar qualquer resistência, George Floyd foi jogado no chão, perto de uma viatura da polícia e após alguns minutos ele morreu asfixiado. Ele morreu asfixiado porque o policial Derek Chauvin se ajoelhou em seu pescoço, impedindo que George conseguisse respirar. Toda a ação dos policiais foi filmada pela adolescente Darnelle Frazer, e assim que foi postada na internet, gerou muita revolta e uma onda de protestos por todo o país e no mundo.

Muitas pessoas têm se perguntado o porquê de tamanha comoção e revolta. E é aqui eu te digo: os EUA é um dos países mais racistas do mundo. São décadas de mortes e mais mortes de negros causadas por meio de ações policiais, muitas vezes mortos apenas por serem negros. Afinal, quantos brancos a polícia mata primeiro e pergunta depois quando ‘desconfiam’ que algo está errado?

Se você quiser entender de verdade o que um norte-americano pensa sobre negros e latinos de uma forma bem didática e, infelizmente, cômica, eu recomendo assistir Bacurau (2019), e prestar bastante atenção na cena em que todos estão na mesa estudando seus planos malignos. Se você não estiver a fim e quiser um breve spoiler, eu deixo aqui abaixo as famosas falas:

‘[…] Vocês são uns caubóis, não são?’

‘Os dois que vocês mataram, eram seus amigos?’

‘Amigos? A gente não mata amigos no Brasil.’

‘Mas não… a gente não é dessa região [nordeste].’

‘De que região vocês são?’

‘A gente é do sul do Brasil. Uma região muito rica. Com colônias alemãs e italianas. Somos mais como vocês.’

“Como a gente?’

Sim.’

‘Eles não são brancos, são? Como podem ser como a gente? Somos brancos. Vocês não são brancos.’

‘Eu não sei… eles parecem brancos, mas não são. Os lábios e nariz dela entregam, tá vendo? Eles estão mais para mexicanos brancos.’

‘Eles são mais para latinos […]’

Bacurau, 2019.

Essa cena do filme retrata o que somos para os norte-americanos: somos latinos. Não somos brancos. Se não somos brancos, não somos como eles. Não somos de raça pura branca. E negros são negros, não são como eles. Portanto, os mesmos direitos não devem ser aplicados aqui. Donald Trump que o diga. Ele foi eleito presidente da AMERRRRRICA basicamente por uma população composta por conservadores.

O que eu estou tentando dizer é que a morte de George Floyd foi a gota d’água, para todo mundo. Os negros vivem há décadas abaixo do que é ser considerado ser humano. E tudo isso é carga da história que foi imposta sobre a sua existência. A falta de oportunidades por causa da cor da pele. A criminalização por causa da cor da pele. A morte por causa da cor da pele. As lágrimas de familiares por perderem um membro da família por causa da cor da pele. E não me venha dizer que é vitimismo. Quantos negros foram recusados em empregos por serem negros? Quantas vezes vimos os governos auxiliarem as populações mais pobres para que as segregações e discriminação social diminuíssem? Quantas vezes as leis foram aplicadas de forma igualitária? Se você não se revolta com isso, eu não sei de mais nada.

No final das contas, mesmo sendo latina aos olhos do povo lá de cima, ainda sou um ser humano privilegiado por causa da cor da minha pele. Não sou negra. Não sei o que é sofrer racismo. Mas escolhi meu lado diante das lutas raciais – eu estou com eles. É o mínimo que posso fazer por ser uma pessoa privilegiada.

Meu mais sincero obrigada a todos que foram às ruas se manifestarem diante do caos e descaso do povo e do governo em relação aos negros. Afinal, temos uma dívida e reparação histórica com todos vocês.

Gabriela Moliver é jornalista, documentarista e analista de conteúdo.