MONÓLOGOS FILOSÓFICOS - Quanto vale a mentira?

Um mundo onde ninguém mente seria um mundo melhor? Nietzsche afirma que a moral é a mentira necessária para não sermos dilacerados por nós mesmos. Se pensarmos com cuidado veremos que é a mentira que nos dá a possibilidade não só de um mundo moral, mas político também. É exatamente ela que nos impede a indelicadeza de verdades desnecessárias, como dizer que o bebê de sua amiga é bonito – mesmo que você o ache feio – ou que você dissesse honestamente o que pensa ao seu chefe quando ele não lhe deu a promoção esperada.

Um mundo ausente de verdades seria um lugar sem engodo, bajulação, ficção. É o que diz Mark, o protagonista do filme ‘O primeiro mentiroso’ (2011). A partir da perspectiva dessa película, num mundo sem mentiras nossos mecanismos de consolação vão por água abaixo deixando-nos entregues a uma vida racional, experimental e pouco sensível para o trato das questões humanas. Claro que o que temos ali é uma obra ficcional, mas que nos faz pensar sobre a verdade como um lugar do olhar frio, distante e egoísta, onde o que vale é o que precisa ser feito, dito, praticado. É nesse sentido que os relacionamentos afetivos se mostram no filme – de acordo com o que Schopenhauer já havia tratado em sua filosofia: relacionamentos são encontros entre pessoas com o propósito de se fazer permanecer através de uma prole com um possível melhoramento genético. Não há desejo sexual puramente, não há atração pela beleza, não há amor. O que há é interesse por instinto de preservação e filhos saudáveis. Essa busca viria do nosso impulso biológico!

No filme, Mark nos mostra a ausência da mentira em um mundo em que apenas ele é capaz de produzi-la e isso exige de sua parte uma relação profunda com a ética. Lembrando mais uma vez Nietzsche, ‘aqueles que não sabem mentir também não conhecem a verdade’. Quem não é capaz de reconhecer exatamente o que é falso não pode ser capaz de reconhecer com firmeza o que é verdadeiro, o que faz com que o protagonista precise criar limites para suas ações, já que tudo o que é dito por ele tem valor de verdade. A dúvida, mecanismo pelo qual se transcende o que está dado, é tímida ali e em nome da garantia de que o que ouvimos dos outros é sempre honesto, ela se extingui rapidamente.

Pensando sobre o que o filme não mostra, é no âmbito da ética também que mora o lado bom da mentira. Como incentivar alguém a seguir em frente em uma vida ausente de sentido mesmo quando nós também não vemos saída? Surge da mentira, a esperança naquilo que não podemos ver e nem saber com certeza. E, por sequência, a amizade como experiência do vivido para além do estritamente necessário; a piedade como forma de diminuir o sofrimento alheio; o amor como a pura presença do outro em nossas vidas. Nascem da mentira as pequenas expectativas sobre nós, sobre os outros, sobre o mundo. E aqui já não falamos do falso, mas de um universo de possibilidades que se abre a partir dele. Sem que percebamos também é a partir da não verdade que nasce uma das mais brilhantes expressões humanas – a arte. Representação do que pode ser, a arte nos traz a dimensão da criatividade para a produção do que agrada e refina a condição humana.

A questão é que tanto no filme como na vida real é no mundo construído entre verdades e mentiras que mora o que podemos chamar de melhor vida possível.

Quem sou: Roberta Melo, graduada, especialista e mestre em Filosofia; professora com quase 15 anos de carreira; autora do livro ‘Ressentir ou Afirmar? Perspectivas nietzscheanas sobre a dor’, editora Appris, 2018; autora de verbetes de Filosofia na Enciclopédia virtual ‘knoow.net’; apresentadora de vídeos sobre Filosofia no canal ‘Sopro de Atena’. (https://www.youtube.com/soprodeatena).