MONÓLOGOS FILOSÓFICOS - Para o Conselho de Classe: assistam Atypical.

Quando a gente entra numa sala para dar aula, lá no fundo, esperamos estar ensinando p’ra todos, mas sabemos que o grau de entendimento varia e que a maneira como alguns vão lidar com a experiência do encontro pode ser muito distante do que imaginamos.

Ano passado eu tive pela primeira vez um aluno autista. Thiago era um aluno que tinha laudo não sei há quanto tempo, mas não era o primeiro ano dele na escola com o diagnóstico. De minha parte, era minha primeira vez com o espectro em sala. Não consegui identificar nada de diferente nele, exceto uma distração muito frequente e piadas sobre quase tudo o que se falava. Ele tinha muito bom humor e isso às vezes incomodava os colegas de classe.

Seguiram-se os meses e por vezes Thiago completava minha fala, fazia alguma piada ou respondia a uma pergunta mais técnica que eu fazia à turma. Ele participava da aula, não posso negar, mas do jeito dele. Até que chegou a época de nossa primeira avaliação. Seria um trabalho em grupo e deixei que a turma se organizasse. Avisei também que se ‘escolhessem’ não fazer o trabalho não poderiam fazer a segunda chamada, afinal, não estava em questão escolher. Diferentemente, caso alguém precisasse faltar no dia da apresentação, a segunda chance entraria em cena.

Chegado o dia, Thiago não havia participado de nenhum grupo, porém estava lá. Perguntei a ele por que não havia feito o trabalho e ele disse que não tinha grupo (e ponto). Ele parecia não se importar com o que iria acontecer com sua nota. Eu pensei: vacilei com ele. Não deve ter conseguido se organizar, falar com os colegas… Deixei Thiago fazer a segunda chamada.

No segundo trimestre, pensei, ‘preciso fazer diferente’, e eu mesma tratei de separar os alunos. Todos estavam encaixados em grupos de três ou quatro componentes. Dever cumprido, pensei, agora é só esperar. A questão é que, dias antes da apresentação, duas meninas do grupo do Thiago vieram conversar comigo. Disseram que ele não estava efetivamente participando da pesquisa e eu achei melhor dizer a elas que deixasse as coisas seguirem e ao final me dessem um parecer sobre a situação. Pois bem, no dia da apresentação elas me procuraram. Thiago realmente não fez nada, não ajudou, não se interessou, não fez o trabalho. Naquele mesmo dia eu os lembrei, em alto e bom tom, que aqueles que escolheram não fazer a avaliação ficariam sem nota. Eis que chegou o dia da segunda chamada e ele estava lá. Fui questioná-lo e ele me disse que eu havia dito que ele poderia fazer sim. Eu disse que não e que ele estava sem aquela nota. Mantive minha palavra.

Um episódio parecido aconteceu no terceiro trimestre, o que me fez conversar com ele mais uma vez tendo como resposta um ‘tá’ e uma cara que me pareceu de desdém. Tive os melhores sentimentos naquele momento? Não, e tinha certeza de que nos veríamos na recuperação.
Entre aquela conversa e o dia da minha prova algumas coisas aconteceram: eu assisti a terceira temporada de ‘Atypical’. Para quem não conhece, ‘Atypical’ é uma série norte-americana de comédia dramática, original da Netflix, que conta a história de um rapaz de 18 anos diagnosticado dentro do espectro do autismo. Eu já havia assistido, quase um ano antes, as duas primeiras temporadas e não consigo entender como não a relacionei com o caso do Thiago. Talvez porque na época ele não fosse meu aluno ainda…

Nessa terceira temporada, Sam, o protagonista autista, vai à universidade. Um lugar em que ele fica desprotegido, vamos dizer assim. Nada era como na escola, lugar em que todos sabiam da sua condição. Também não contava com a presença tão frequente da família. Ora porque ele fazia questão de resolver suas próprias coisas, ora porque naquele espaço não cabia mesmo certas intervenções. O fato é que, na universidade, Sam encontra problemas nas aulas de Filosofia (que coisa…). O que parecia arrogância e desdém de sua parte era apenas a forma dele se expressar. Era um traço seu, uma forma de dizer o que pensava de maneira direita e objetiva. O que desagradava a professora (compreensível, já que não fazia ideia do espectro em seu aluno). Claro que ficaria muito difícil de não me identificar com aquela história. Confesso que senti um pouco de culpa. Deveria ter procurado compreender mais sobre o autismo, sobre as questões pessoais do Thiago, mas não o fiz.

No dia da minha prova de recuperação fiz questão de falar com ele em particular antes. Pedi que ele tentasse não deixar questões em branco, que se esforçasse para melhorar a letra (ela era terrível e eu não queria não entender sua escrita) e que eu estava torcendo por ele. Mais uma vez Thiago me respondeu com aquele combo arrogância/desdém.

Corrigi sua prova e fiquei muito feliz em ver que tirou um 90. Nota bem acima do que ele precisava. Thiago passou em Filosofia, mas quando chegou o conselho de classe eu descobri que o menino ”tô nem aí p’ra você” tinha ido para a recuperação em nove disciplinas e ficado em quatro para o Conselho de Classe decidir. Seu comportamento parece que foi decisivo para que, quase em coro, os professores dissessem: reprovado!

Enquanto eles traziam à tona toda sorte de histórias pelas quais passaram com o menino, eu olhava para a foto dele no ‘carômetro’ (lista de fotos dos alunos) em cima da mesa. Acho que eu olhava tão fixamente que a diretora me perguntou, como se já soubesse o que se passava na minha cabeça: – O que foi, Roberta? Eu respirei fundo e disse que não concordava com aquela reprovação e sem me dar conta direito do que dizia mandei: – Esse menino é autista! Vocês não viram ‘Atypical’? Todo mundo me olhou com a obviedade de quem não tinha visto.

Naquela hora, pensei, ‘preciso salvar esse menino’, e na primeira oportunidade de fala que tive novamente, eu disse: – Olha, esse menino não pode ser medido como os outros alunos. Ele tem questões que o diferenciam e que estão muito mais ligadas ao seu comportamento do que à sua capacidade cognitiva. Thiago tem sérias dificuldades para trabalhos em grupo e um jeito diferente mesmo de tratar as coisas. Nessa hora, o professor de Física manda: – Esse menino é desrespeitoso, além de não saber o conteúdo (Física era uma das quatro disciplinas em que ele estava ficando reprovado). Ele continuou: – Se ele se comportava na sua aula e tirava nota isso é porque ele deve gostar de você e da sua matéria.

Mais uma vez eu voltei a falar, eu precisava falar: – Ele não é simplesmente um menino mal-educado, é o jeito dele de encarar o mundo. Não tome como algo pessoal, João, ele não se comportava na minha aula, ele pouco prestava atenção em mim. E se quer saber se eu gosto dele, vou te dizer que não morro de amores não, mas eu entendo hoje que é o jeito dele.

Por fim o professor disse: – Por mim, eu não libero. Ele não está à altura dos nossos alunos. Aí eu precisei me colocar de novo: – Ele não é como os outros alunos e não é justo avaliá-lo da mesma forma.

Nessa hora a diretora, mais uma vez, perguntou sobre o que havíamos decidido pedindo que cada um levantasse a mão. Prontamente eu disse que por mim ele estaria aprovado, outros colegas fizeram couro e conseguimos liberá-lo de duas disciplinas, o que o deixou de dependência em duas: Física e Química. Eu juro que me senti uma heroína tendo o meu dever cumprido. Acho que por desconhecimento e falta de atenção mesmo talvez não tenha facilitado a vida do Thiago ao longo do ano, mas espero que no ano que se inicia as coisas fiquem mais fáceis – p’ra ele e p’ra nós.*

* Os nomes e algumas informações foram substituídas para preservar a identidade dos envolvidos.
**Revisão feita por Heloina de F. Moraes Viera, professora de Língua Portuguesa e mãe de uma criança com espectro autista.

Imagem: Netflix.

Quem sou: Roberta Melo, graduada, especialista e mestre em Filosofia; professora com quase 15 anos de carreira; autora do livro ‘Ressentir ou Afirmar? Perspectivas nietzscheanas sobre a dor’, editora Appris, 2018; autora de verbetes de Filosofia na Enciclopédia virtual ‘knoow.net’; apresentadora de vídeos sobre Filosofia no canal ‘Sopro de Atena’. (https://www.youtube.com/soprodeatena).