MONÓLOGOS FILOSÓFICOS - Mudanças: a vida te encara e você encara a vida.

Eu gostaria de tratar aqui do necessário olhar que precisamos estabelecer sobre a mudança. Porque você pode pensar que é um observador atento às mudanças que lhe chegam e nesse caso você seria uma alma, um espírito ou qualquer coisa que vê a roda girar. Você também pode pensar que é a própria mudança. Nesse caso, você é o ser que troca de pensamentos, de células, de valores ao longo de sua vida. A questão é, que sendo você o observador ou a mudança em si, é preciso um adaptar-se às situações internas e externas que chegam, um aprender a lidar com “o tudo” que passa o tempo todo.

Como seres da natureza que somos passamos naturalmente pelas fases de nascimento, crescimento e morte, mas também passamos pelas situações que surgem ou deixam de existir. Eu separei aqui dois lugares possíveis para pensarmos essas chegadas e partidas:

– a hora que a vida encara você;

– a hora que você encara a vida.

A vida te encara: ela olha enquanto você muda

Nem sempre nos damos de conta, mas a cada instante iniciamos um processo de sermos outros. Há sempre uma diferença em nós. Ou de outra forma: sempre estamos, nunca somos. O que não significa que a cada instante seremos seres irreconhecíveis, mas que células estão sendo trocadas e que ideias, pensamentos, valores, sentimentos podem não ser mais os mesmos.

A gente acha que pensa e age como Chico Buarque canta em Cotidiano: “todo dia ela faz tudo sempre igual”. Na verdade, não existe esse “tudo sempre igual”. Deleuze diz que quando desejamos agir e nos comportarmos igualmente temos um grande empobrecimento de nós mesmos, porque entramos num processo de recognição. Em outras palavras, paramos de pensar e apenas repensamos (e repensar aqui não é refletir, mas ruminar o que já foi mastigado não permitindo um alimento novo). Buscamos criar uma semelhança empobrecedora com o passado que não nos deixa ir além do que já fomos um dia.

A vida não é semelhança. A vida é diferença e cada instante é um. Uma maneira de lidar com esse princípio é encarar as experiências pelas quais se passa como possibilidade de criação. Encarar a vida e criar algo diferente do que foi. Muitas vezes, não temos mesmo uma saída pronta e esquecemos da nossa capacidade criativa de produzir saídas nunca antes pensadas. Saídas novas são absolutamente normais, porque somos diferença.

Além desse “instante diferença” que a gente passa o tempo todo, somos diferentes dos outros, então não precisamos fazer “como” os outros. Quando a vida te encarar esperando p’ra ver o que você vai fazer consigo mesmo, lembre-se que o “tudo sempre igual” não existe. A nossa experiência nesse mundo pode ser muito rica se a gente entende e aceita o movimento que há em nós.

Você encara a vida: ela muda, você observa

Quando um ente querido morre, você perde o emprego ou chega uma doença é a hora que o mundo girou e quer te força a girar também. Ele nos coloca na berlinda e nos pede um “repensar” o nosso lugar. Mas em que lugar podemos estar? Essa é uma boa pergunta a se fazer, porque não dá p’ra ir para o lugar que a gente quer estar. Até daria p’ra ir, mas pode ser um lugar muito desconfortável e difícil de permanecer. Então, vale mais considerar o lugar onde podemos estar. Se na perda de um ente querido você se sente confortável para lidar com isso com muita serenidade, sem grandes demonstrações de dor e sofrimento, que assim seja. Se na perda de um animal de estimação você sente a necessidade do luto, fique de luto.

Outro lugar interessante que podemos entrar é o de pensar em como conceituamos a nossa vida. Mas é interessante fazer isso criando um afastamento: olhe de longe. Alguns filósofos chamam isso de desengajamento moral. Olhar criticamente para as suas verdades, que não são fixas (vale lembrar), pode te ajudar a rever algumas situações. É interessante aprender a tirar os pontos finais das nossas certezas e colocarmos pontos de interrogação. Portanto, se alguém diz, na perda de um emprego: “Eu não sei fazer mais nada a não ser isso”. Pode passar a dizer: “Eu não sei fazer mais nada a não ser isso?”. O questionar-se é um movimento atraente p’ra gente entrar num processo de análise da vida que a gente escolheu viver.

A singularidade nossa de cada dia

É depois de olharmos as mudanças por essas duas perspectivas que podemos conectá-la ao princípio de singularidade e a garantia de que a vida muda o tempo todo. A partir daí a gente volta a ideia de que a vida só pode ser experimentada de fato com o seu princípio natural de diferença. Quando nos colocamos na posição de percebedores do que chega podemos lidar melhor com a diferença, como também podemos considerar a possibilidade de nos reinventarmos. Aqui, a criação, a criatividade de ser alguém, de construir-se está em questão. Einstein fez uma Física criativa e todos nós carregamos a potência de fazermos esse movimento criativo também, pelo menos sobre nós mesmos.

O que costuma atrapalhar essa caminhada é o fato de que fomos ensinados a acreditar que tem um “jeito certo” de ser e de fazer acontecer. A gente mata a criativa quando ela não está de acordo com o “jeito certo” que o mundo nos ensinou. Matamos a unicidade, a singularidade. Matamos também a plasticidade que carregamos para nos transformarmos diante das situações. O perigo do “jeito certo” é entrarmos numa nóia de que se não nos encaixarmos no formato dado, não serve, é feio, é errado. Mas será mesmo?

A saúde e a doença do viver

Com tudo isso não estou dizendo que é fácil aceitar as mudanças e nem que você não pode pintar os cabelos, já que tem que aceitar os fios brancos, porque foi o que chegou p’ra você. A gente precisa entrar numa relação saudável com essa transitoriedade que a vida apresenta.

Pode parecer óbvio, mas esse lugar saudável é aquele que se opõe a um lugar doentio. Podemos pensar: que tipo de mudança é essa que eu preciso fazer p’ra me sentir mais confortável? Que tipo de NÃO ou SIM me gera angústia, desconforto ou prazer e realização? Esse é um bom princípio para escolhas, porque nelas inserimos o sentir. É na dimensão do sentimento que a saúde e a doença nos ajudam a reconhecer o nosso lugar. Mas para que isso aconteça é precisamos sermos profundamente sinceros conosco. Manter uma relação de sinceridade aqui, significa estabelecer uma intimidade consigo mesmo. Nesse contexto, o que há é um falar sem vergonha e sem a preocupação de julgamento.

O lugar de saúde e doença (com sinceridade) é um lugar que nos ajuda a ver o nosso inconsciente pela via do sentir. Porque nosso corpo é o lugar de expressão do nosso mundo mais interno. A ansiedade, o pânico, por exemplo, são expressões do mundo interno que o corpo revela. O sentir nos ajuda a perceber um bom lugar para estarmos e criarmos uma vida nova a ser experimentada.

Para finalizar vou deixar uma lista resumida de coisas que escrevi aqui e que eu tento sempre me lembrar para que a minha vida seja um lugar mais saudável p’ra quem mais importa – eu mesma:

1. Coloque pontos de interrogação no lugar dos pontos finais das suas verdades mais íntimas.

2. Perceba como seu corpo reage às situações e suas decisões.

3. Identifique o que te causa saúde e o que te causa doença.

4. Ninguém sente como você sente, ninguém vive no seu corpo além de você.

5. Lembre-se da sua singularidade.

6. Seja criativo e invente um jeito de ser.

Abraço!

Quem estou eu: professora de Filosofia; autora do livro “Ressentir ou afirmar? Perspectivas nietzscheanas sobre a dor”; colunista do Observatório da Comunicação Institucional; colaboradora da página knoow.net com verbetes de Filosofia, e apresentadora de vídeos sobre Filosofia nos canais “Sopro de Atena” e “Monólogos Filosóficos”. Site oficial: www.profrobertamelo.com.br