Loucura por um caldeirão. Por Juliana Fernandes Gontijo.

Meus avós Cândida e José Carlos viviam em um sítio ainda no início da década de 1970 no interior de Minas Gerais. A casa não era muito grande: quarto, copa, sala, banheiro. Do lado de fora, além de outra cozinha na varanda coberta, mais dois banheiros e outra cozinha.

Ao fundo do quintal, havia um galinheiro, mais dois quartos que meus primos apelidaram de “hotel galinhal”, devido à localização. Havia ainda um pequeno cômodo onde meu avô guardava ração e as ferramentas dele.

Eu adorava brincar no quintal, subindo nos pés de manga, balançando nas gangorras de corda de sisal. Vô Joca, como a gente o chamava, nos empurrava na gangorra bem alto. Ele sempre dizia: – Sua mãe e sua avó não podem ficar sabendo, porque vão me xingar demais.

Como era bom comer goiaba e chupar jabuticaba, mexerica e laranja sentada debaixo das árvores. Meu pai gostava de deixar a “muchaca” (bagaço) da laranja pendurada na laranjeira. Conseguia facilmente descascar a fruta sem arrancá-la do pé. Lembro-me de que ele também gostava de escrever pequenas poesias com caneta Bic no tronco de uma goiabeira. Por uns 3 anos, um poema ficou gravado lá.

A horta era cheia de couve, cebolinha, alface e almeirão. Ah… não posso me esquecer da bilosca, uma árvore de uns 30 metros de altura onde eu e meus primos gostávamos de escrever o nosso nome com faca. Meu avô sempre dizia: – O nome dos bobos está em todo lugar.

Vô Joca cuidava muito bem do quintal, às vezes a gente ajudava a capinar, plantar feijão, regar as plantas, colher espigas de milho. Para aguar aquele tanto de verduras e frutas, ele construiu duas cisternas de 15 metros de profundidade e colocou duas manilhas de água no meio do quintal.

Vó Candi falava: – Cuidado, meninada, cisterna não é lugar de criança. Não fiquem perto desse “trem”. E nenhum de nós nunca brincava ali perto.

A gente corria, fazia amarelinha no chão de cimento, rolava na grama onde os carros ficavam estacionados na frente do alpendre. Ficava todo mundo coçando o corpo por causa do capim, eram uns 20 metros de comprimento só de grama.

Eu e meus irmãos gostávamos de fazer “bolo de aniversário” com esterco fresco de vaca, espetando pedacinhos de graveto neles como se fossem velinhas… Eu adorava sair com vô Joca para “catar” esterco na rua ou no meio do mato.

Como era deliciosa a comida que vó Candi fazia no fogão de lenha. Vez por outra, punha linguiça para defumar em cima de um dos seus fogões de lenha. Ela cozinhava com banha de porco. Então, guardava a banha (com uns pedaços de toucinho) debaixo da pia. Confesso que muitas vezes roubei pedacinhos de porco. O caldeirão que ela usava era bem areado, sempre brilhando… Ninguém podia pegar aquela panela. Na verdade, vó Candi era ciumenta com todas as suas panelas e o caldeirão era praticamente de estimação. Comprou numa viagem a São Paulo quando foi visitar uma amiga.

Um dia, o caldeirão sumiu. Quando foi guardar a banha produzida após a fritura de costelinha para um almoço de feriado não encontrou a panela. O sítio estava cheio. Cinco dos sete filhos, mais as esposas e maridos, além de 12 netos. Procura daqui, procura dali e nada de caldeirão. Vó Candi reuniu todos nós no quintal para tentar descobrir quem escondeu a panela.

– Quero meu caldeirão, não me interessa quem escondeu.

Ninguém dizia uma palavra. Reclamou tanto do sumiço que vô Joca largou a gente com ela e foi para o boteco encontrar com os amigos para tomar uma “branquinha”. Ele tinha certeza de que uma das crianças havia feito uma “arte”, mas quem? Vó Candi era muito esperta e resolveu trocar de tática:

– Não vou dar castigo, até dou um pedacinho de toucinho depois, mas eu preciso saber quem pegou meu caldeirão e escondeu. Honestidade é p’ra vida, gente!

Ao ouvir que não iria ter castigo, Carminha, que tinha 10 anos na época, saiu de trás do pilão de socar café toda amuada e trêmula de medo: – Fui eu, vó! Desculpa… Estava brincando ontem à tarde em cima da cisterna aqui fora e deixei o caldeirão cair lá dentro. Pronto, falei! Agora vou ganhar um pedacinho de toucinho?

Quanta inocência! Foi um silêncio geral. Cassiano e Vanice, pais da menina, não sabiam onde punham a cara de vergonha. Como a filha pudera ter feito tal traquinagem? Na certa, outros primos estavam metidos naquela confusão, mas a filha assumiu toda a arte sozinha.

Depois de muito pensar, minha vó disse:

– Só vai ter toucinho depois que você descer lá dentro e pegar meu caldeirão.

– O quê, mãe? – Gritou Cassiano, sem acreditar direito no que a mãe falava. – A senhora é que deveria pular lá dentro e pegar… Deus do céu!

– Vai sim! Não tem perigo não. Carminha é petitica! Magrinha como ela só, vai conseguir entrar no balde de ferro e pegar meu caldeirão. Ele é de 25 litros e cabe a menina. É só amarrar um sisal bem forte que ela desce. Pega lá no cômodo da ração. Está no canto da porta, Cassiano!

O nosso réveillon estava já “estragado”. Todos nós ficamos horrorizados com aquela ideia maluca da minha avó. Se fosse hoje isso poderia dar até cadeia ou processo.

– Mãe, pelo amor de Deus! Olha o perigo. – Disse Tadeu, outro filho dela. Carminha era como se fosse uma filha para ele.

Aquele dia 31 de dezembro seria inesquecível porque quase virou um pesadelo. Vô Joca chegou do boteco. Estava meio “alegrinho” com a “branquinha” e deu corda para a mulher:

– Preocupa não, Cassiano. Nóis amarra a Carminha direito no balde.

Vanice pegou o terço, sentou num canto da varanda e começou a rezar o Credo. Mas ela sabia que ir contra alguma decisão da sogra era briga na certa.

Vô Joca pegou o tal do balde grande, a corda de sisal e lá foram destampar a cisterna. Viram que realmente o danado do caldeirão estava lá boiando.

– Como essa coisa foi cair lá dentro, filha? Ele sabia que Carminha guardava muito bem um segredo e jamais contaria o que de fato aconteceu.

Depois de tudo arrumado, foi a hora derradeira. Vó Candi pegou uma cadeira e foi rezar do lado de Vanice. Tentou segurar o choro, pois acabou percebendo a besteira que estava fazendo ao colocar a vida da netinha em risco. Mas a decisão já estava tomada. A nora se afastou um pouco, tamanha era sua raiva mesmo com o terço na mão.

Helvécio, um dos genros de vó Candi, disse com um pequeno sorriso no rosto: – E se a gente tentar içá-lo com esse mesmo balde? Quem sabe dá certo?

– Sei lá, Helvécio! Eu quero meu caldeirão.

– Ah… véia ordinária! E se a Carminha se machucar lá dentro? A culpa será sua e vai carregar isso para o resto da vida.

Vó Candi era mandona mesmo! Quando chegava nesse estado ninguém aguentava. O jeito era “mandar” Carminha pegar aquela porcaria de caldeirão.

A essas alturas os netos já estavam todos acuados dentro do quarto de vó, morrendo de medo de ficarem no sítio. Naquela época, nem energia elétrica havia no sítio. Samu? Nem se falava nisso…

Depois de mais de uma hora tentando pegar o caldeirão, perceberam que não havia outro jeito a não ser mandar Carminha descer… A distância era longa e a corda amarrada a um ferro não conseguia trazer a panela de volta. A sorte de todos é que o sisal tinha 30 metros e não havia muita água na cisterna. Mas descer 15 metros poderia dar falta de ar na menina, a corda poderia arrebentar, ou o balde tombar…

Cassiano e Vanice abraçaram a filha e fizeram o sinal da cruz na menina. Carminha parecia resignada com a situação, mas na verdade estava era em estado de choque. Não havia escolha. Era preciso assumir o erro e trazer o caldeirão de volta.

– Mamãe, papai, eu consigo! Vai dar certo. Desculpe, vó Candi.

Cassiano, Tadeu e Helvécio na ponta da corda. O balde era grande. Carminha conseguiu até se sentar dentro dele. A menina era muito pequena. O diâmetro da cisterna era de um metro e meio, porém não havia uma escada interna. Como vô Joca tremia muito, então resolveu deixar os filhos e o genro fazerem o serviço.

Que loucura a ideia de vó Candi… Confesso que todos ficamos aterrorizados com a decisão dela. Mas vó era pulso firme, quando queria uma coisa…

– Vai com Deus, Carminha.

Ela tentou falar algo para a neta, mas a nora interrompeu:

– Não fala nada, dona Cândida, a filha é minha e não sua. Se acontecer alguma coisa com ela…

A operação durou uns 10 minutos. Cassiano pediu silêncio para ouvir tudo o que a filha pudesse falar.

– Grita, filha. Conseguiu pegar?

Depois de uns segundos, uma vozinha fina saiu de longe junto ao eco:

– Puuuuuuuuuuxa, pai! Puuuuuuuuuuxa mais! Peguei… guei… guei… ei…

Foram uns três a quatros minutos mais de aflição… Puxar a corda era bem mais difícil. Quando Carminha chegou todos aplaudiram. A menina estava exausta. Suava igual uma tampa de chaleira.

Vó Candi estava em lágrimas. Arrependida do perigo que fez a neta passar. No entanto, ela não era humilde o suficiente para pedir desculpas à neta. Aquilo poderia ter virado uma briga de família ou até um caso de polícia. Mas Cassiano e Vanice eram resignados e não gostavam de briga. Cassiano pegou a filha, suas malas e disse à mulher: – Pelo menos um ano sem vir à casa de mãe. – A mulher, claro, concordou com a cabeça.

Os outros fizeram o mesmo e tomaram a decisão de voltarem para suas casas. O réveillon realmente perdeu a graça. Mas Carminha estava bem, graças a Deus. Era a única razão de todos estarmos aliviados.

– Ô pai, acorda! Que sono pesado, hein?

Tentamos chamá-lo várias vezes, custou a se levantar porque bebeu um cadinho a mais.

– Carmiiinha! Conseguiu pegar o caldeirão? – Gritou, sobressaltado, ao acordar.

– Ô pai, já vamos embora! Preciso viajar amanhã cedo, disse Cassiano. – Vimos que estava bem “cansado” e deixamos o senhor tirar uma soneca na grama… Nem almoçou hoje…

– Acredita que sua mãe fez a gente descer a Carminha na cisterna para pegar aquela porcaria do caldeirão de banha de porco? A minha netinha querida havia deixado a panela cair lá dentro.

Ah… mas se isso fosse verdade, eu me separava da Cândida e ainda entupia aquela maldita cisterna…

– Não, pai. Mãe esqueceu o danado dentro do saco de ração! E botou todo mundo doido aqui… Vê se pode…

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.