Se há uma forma de usar a tecnologia em prol da sociedade, também há uma forma de usá-la contra (Foto por BP Miller no Unsplash).
A internet é tida e havida por alguns como um grande símbolo democrático. Afinal, ela nos propicia voz, principalmente quando vemos o autoritarismo querendo nos calar. De certa forma, é uma espécie de sopro de vida que sai dos nossos pulmões e tenta ganhar o mundo, como uma canção que é entoada por um coro multifacetado de vozes. E dada a amplitude dessa rede, o concerto pode ser ouvido por, se não todos, muitos. A menos, é claro, que calem essas vozes. Por isso, outras correntes defendem justamente o contrário: a internet mata a democracia. Será?
É bem verdade que, muitas vezes, existe essa falsa sensação de liberdade, quando protegidos pelo véu da impessoalidade e anonimato que tais redes supostamente oferecem, usamos nosso “poder” para fazer o mal. Destilamos nosso ódio irracional munidos com o escudo do direito à expressão e deturpamos a importante ferramenta que temos em nossas mãos. Ou, ainda que menos problemático, simplesmente a subutilizamos, ao acreditarmos que estamos salvando o mundo apenas postando uma mensagem de repúdio no Facebook, quando, na verdade, já se passou – e muito – o tempo de levantarmos do sofá e corrermos atrás do que é certo, devo admitir.
Na internet, porém, é possível acompanharmos muitas denúncias apresentadas pelas parcelas mais excluídas da sociedade, que vivem à margem do poder público, como também das ações da iniciativa privada. Se não fosse por esse emaranhado de informações conectadas permitir que qualquer cidadão tivesse voz e conseguisse expressar sua dor, seus anseios, suas necessidades, muita das mazelas que ocorrem jamais chegariam ao grande público. Sem essas redes e canais digitais, essas pessoas não teriam voz. Seriam pessoas invisíveis, como já preconizava Will Eisner.
As periferias das grandes cidades, tanto no Brasil quanto em qualquer parte do globo, estão repletas de problemas sociais. É um retrato vergonhoso do descaso que temos com o próximo. Dentre o leque variado de adversidades, uma das mais terríveis, sem dúvida, é a violência.
O mundo é um lugar violento. A violência faz parte, lamentavelmente, da natureza humana. Desde os primórdios do homem, vemos e convivemos com tal comportamento. E não é preciso uma guerra ou um genocídio para o detectarmos. Encare com o viés que desejar: “Caim atacou seu irmão Abel e o matou”. Real ou figurado, naquele universo só havia quatro pessoas e elas não conseguiram resolver suas questões através do diálogo.
Muito se reclama da truculência policial em ações deflagradas em comunidades carentes. Antigamente, os relatos dos moradores eram insuficientes para se levar justiça àquela população. Contudo, com o crescimento exponencial da tecnologia e a abertura democrática que a internet proporcionou a toda sociedade, essas pessoas passaram a ter voz e também a ser vistas. Com isso, inúmeros casos de abusos, agressões e crimes puderam ser denunciados com apoio de filmagens realizadas com aparelhos celulares e publicadas livremente em sites de compartilhamento de conteúdos como o YouTube, entre outros.
A internet catalisava denúncias contra o desrespeito aos direitos humanos. E aqueles que fazem da violência seu estandarte, não iriam ficar de braços cruzados, lamentavelmente.
Na cidade de Santa Ana, Califórnia (EUA), policiais encontraram uma forma de coibir a disseminação de suas ações na rede. Para isso, contaram com uma ajuda um tanto quanto inusitada: a mão da Disney.
Não, calma. É claro que a gigante do entretenimento não apoia ações violentas da polícia local. Porém, ela possui acordos de copyright com os sites de vídeos, como o YouTube, por exemplo. Com isso, os robôs dessas plataformas estão treinados para encontrar e eliminar automaticamente conteúdos que firam os direitos autorais da Disney. E foi justamente nessa brecha que os policiais mal-intencionados conseguiram entrar.
Como a detecção é automática, feita por robôs através de machine learning, isto é, técnicas de aprendizagem automática, os oficiais da lei perceberam que, se durante a sua abordagem colocassem no sistema de som de suas viaturas músicas da Disney, caso fossem filmados e esses materiais submetidos ao YouTube, os robôs encontrariam uma suposta violação de direito autoral e eliminariam o material em poucos segundos. Assim, eles conseguiram burlar o sistema com uma forma de evitar a divulgação de vídeos com abordagens policiais pela internet.
Por sorte, numa das vezes que tal situação ocorreu, o alto volume do som usado na incursão incomodou diversos moradores daquela localidade. E um deles resolveu sair de sua casa e confrontar a polícia. Para o azar dos oficiais, o morador em questão era um importante vereador. Ao tomar conhecimento do cargo político, o oficial se desculpou com os presentes e desligou o alto-falante, retirando-se em seguida.
Posteriormente, o departamento de polícia da cidade repudiou a ação, claro, e comunicou que não compactua e nem orienta tal comportamento. Todavia, é uma declaração política e pouco prática. Não ficou claro se haveria alguma investigação da corregedoria ou a criação de algum programa que impedisse a recorrência dessa prática. Hoje, inclusive, há denúncias de vários casos semelhantes que estão acontecendo em diversos pontos do território americano. Até The Beatles estariam sendo usados pelos policiais. É uma pena que usem as canções de John Lennon de uma forma tão escusa, ao invés de tentar entender a mensagem contida em suas letras. É questão de tempo até vermos situações como essa espalhando-se pelo globo e chegando, inclusive, até nosso país.
Quando pensamos, enfim, que a tecnologia pode ser usada para mudar positivamente a vida das pessoas, defrontamo-nos com a capacidade humana de gerar o caos e fazer o pior. Já começo a questionar uma certa princesa “disneyana”: Let it go?
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Raphael Pinheiro é escritor, com parte de seus textos traduzidos para espanhol e italiano, pós-graduado em Marketing Digital e Comércio Eletrônico. Possui mais de duas décadas de experiência em tecnologia, tendo passado por instituições públicas e privadas como a RIOTUR e a Fundação Getulio Vargas. Há 16 anos é editor-chefe do Portal da Academia Brasileira de Letras. Colabora em coluna semanal com a Pressenza, agência internacional de notícias com representação em mais de vinte países.