A imprensa brasileira no fogo cruzado da ultra-política. Por Beatriz Amaro.

O termo ‘ultra-política’, cunhado por Slavoj Žižek em 1999 e recuperado em 2013 pela socióloga Sabrina Fernandes, criadora do canal Tese Onze, parece-me assustadoramente preciso para designar o momento pelo qual passa o Brasil: é uma estratégia de despolitização que leva à militarização do debate político, substituído por uma guerra simbólica entre ‘Nós’ e ‘Outro’, sujeito que personifica a polarização político-ideológica.

No atual cenário brasileiro, o ‘Outro’ foi derrotado – e o ‘Nós’ corresponde à extrema direita, cujas respostas totalitárias encaixaram-se perfeitamente no espaço em branco deixado pela crise neoliberal de 2008. Isto foi possível não apenas graças à ausência de uma contrapartida da esquerda, mas também à alienação social, fruto da já citada despolitização do debate, que abre margem para que a violência se disfarce de solução.

Apesar de não mais escancarar o apoio que costumava conceder aos partidos de direita (especialmente no segundo turno), afogados em escândalos de corrupção aos quais não se pode fechar os olhos, a grande mídia brasileira consente que um cenário ultra-político se estabeleça; a ela pouco interessa, afinal, a politização da política, ou seja, que a política seja local de práxis de discussões e ações relativas aos problemas internos da sociedade.

As eleições presidenciais de 2018 foram exemplos claros desta anuência. O professor João Feres Jr. esclarece: impossibilitada de apoiar Geraldo Alckmin, Marina Silva, Henrique Meirelles ou João Amoêdo, os nanicos do pleito, à imprensa restaram Fernando Haddad e Jair Bolsonaro. O antigo embate mídia versus Partido dos Trabalhadores (PT) torna impensável o apoio a Haddad; Bolsonaro, por sua vez, além de emergir de um partido sem base concreta, o Partido Social Liberal (PSL), mostrou imensa disposição em confrontar veículos de comunicação. A mídia, portanto, concretizou seu afastamento do debate político ao aliar-se ao Judiciário e ao Ministério Público, o que é tão ou mais problemático que as alianças com os partidos políticos, haja vista os últimos episódios protagonizados por juízes de índoles questionáveis, as acusações suspeitas e predileções escancaradas.

Com a ultra-política em voga, o debate militarizado e a extrema-direita populista já no poder, a democracia liberal entra em risco – não somente enquanto regime político cujo oposto é a ditadura, e sim como modelo de governo que prevê participação popular efetiva nos processos de tomada de decisão e que, a partir do momento em que se resume a procedimentos burocráticos, perde seu valor.

Uma das maiores preocupações da esquerda brasileira é (ao menos deveria ser) a retomada da democracia plena, na qual a população é capaz de criticar, dialogar e causar efeitos práticos na política, que vão muito além de eleger um representante de quatro em quatro anos.

Neste contexto, é fundamental que a mídia retome seu engajamento político – o que não significa retornar à postura de outrora, com apoio declarado a determinadas siglas partidárias e ideologias socioeconômicas; pelo contrário, implica em abrir mão de convicções que favoreçam a elite midiática e priorizar a emancipação popular no tocante ao acesso a informações fidedignas, sejam benéficas ou maléficas, sobre os diversos representantes e atores políticos.

A agenda midiática exerce enorme pressão sobre a agenda política. Um assunto de destaque na mídia que reverbera na política torna-se pauta principal dos representantes e da população; por outro lado, quando a imprensa se exime de abordar tópicos relativos à política e aos políticos, eles próprios ocupam a função de informar a sociedade a respeito dessas questões.

No fogo cruzado da ultra-política, a imprensa tem duas opções: engrossar o caldo da polarização político-ideológica que culmina na militarização do debate público e na guerra simbólica entre ‘Nós’ e ‘Outro’ – e que, a determinada altura, afeta a liberdade de expressão, sem a qual a mídia é extremamente prejudicada; ou exercer pressão e utilizar seu impacto rumo ao resgate – e, por que não, à expansão – da democracia, que pode adquirir formas cada vez mais participativas e cada vez menos contaminadas pela influência da própria mídia.