Feliz Aniversário. Por Juliana Fernandes Gontijo.

Anelise viveu nas ruas de São Paulo por 15 anos. Aos 6, perdeu os pais em um incêndio na comunidade onde eles residiam e, por isso, a menina foi morar com os tios Pedro e Juca debaixo do viaduto do Chá. Dormiu embaixo de papelão; tomou banho no rio Tietê; pegou muita carona em traseira de ônibus. Viu várias pessoas se drogarem até morrer e, pelo menos, três assassinatos. Catou latinhas, caixas de papelão e garrafas de plástico em troca de comida. Aprendeu, na triste vida que passou, como sobreviver com tão pouco.

Houve tempo que teve apenas uma muda de roupa. À noite, uma vez por semana, tomava banho num abrigo. Um dia, ficou sabendo de uma ONG que ajudava moradores de rua a tirar os documentos. No entanto, era preciso ter paciência, chegar bem cedo e aguardar. Ela chegou às 4 horas da manhã.

– Sou Anelise de Souza Freitas. Meu pai era Geraldo Paulo de Souza e minha mãe, Maria Mendes de Freitas.

– Quantos anos? – Perguntou a atendente.

– Vinte e um!

– Pode aguardar que vamos atender. Vai demorar um pouco, mas será atendida.

A moça aguardou quase 10 horas, mas saiu de lá com os três documentos nas mãos. O melhor de tudo foi ela ter conseguido uma residência fixa. A ONG estabeleceu que os primeiros 30 que estivessem na fila iriam ganhar um lugar p’ra morar. Um alívio, porque assim ela poderia finalmente tentar a vaga de emprego que ela tanto queria: ser camareira de hotel.

No dia seguinte, já tratou de se matricular em um curso de hotelaria gratuito oferecido pela instituição. Foram 2 meses de muito estudo e aprendizado.

Ao fim do curso, ganhou, em um sorteio, a participação em prova de seleção para a vaga para camareira numa grande rede de hotéis de São Paulo. Passou em primeiro lugar.

Trabalhou por lá durante um ano. Todos no hotel gostavam dela.

Os hóspedes, muitos deles importantes, deixavam agrados na Recepção para a moça. Bombons, flores, roupas e sapatos.

Ela chegou a ser líder de equipe e no dia do seu aniversário de 22 anos, ela pediu folga. Queria comemorar com seus amigos na ONG.

– Infelizmente não temos como te dar folga Anelise, neste dia temos uma grande conferência no hotel e até precisamos recrutar mais pessoas. – Disse o gerente.

– Eu nunca pedi nada, senhor Otávio… Todos têm folga no dia do aniversário. Mas tudo bem… Pode ser Deus que deseje assim, não é verdade?

– Uma folga no domingo eu consigo, mas na quarta-feira não tem como, lamento!

Anelise ficou triste por não conseguir aquela folga, mas não havia outro remédio a não ser trabalhar no dia do seu aniversário.

E aquele dia chegou. O hotel estava movimentado. Mal os empregados podiam se cumprimentar. Era apenas um “feliz aniversário, Anelise”.

Por volta das 17 horas, a camareira precisou assumir um serviço no auditório. Cinco pessoas estavam com ela. Todos ficariam com o salão e ela, com uma espécie de camarim no fundo.

– Ei, colegas, o senhor Otávio me pediu para eu organizar, sozinha, o camarim.

– Tudo bem, pode ir. Vamos fazendo o serviço aqui. Se precisar de ajuda, pode chamar. – Disse Maria Helena, uma de suas colegas.

Na verdade, não era só um camarim, mas dois e muito trabalho para poucas horas. Começou limpando os sofás, depois as mesas e cadeiras, por último o chão. Era uma grande sala. Levou mais de duas horas para limpar o primeiro, e ainda tinha os banheiros. Terminou e foi para o segundo. Ao destrancar a porta, Anelise se assustou com uma grande caixa de presente vermelha num canto. Sobre o laço dourado, um envelope.

A camareira, que não se importou com o embrulho, começou a limpar a sala pela mesma ordem do camarim anterior. Mas sem querer, se esbarrou na caixa e o cabo da vassoura puxou o laço. Foi tentar arrumá-lo, mas o envelope caiu no chão. Ao pegá-lo, viu que seu nome estava escrito nele.

– Meu nome? Como assim?

Virou o envelope e viu a frase: “Abra, Anelise”.

No bilhete, estava escrito: “Esse é seu exame de DNA. Abra a caixa”.

A filha de Maria Helena nem precisou abrir a caixa. Seu pai Geraldo Paulo saltou lá de dentro:

– Feliz Aniversário, filha!

Anelise se assustou tanto que caiu sentada no sofá com o coração disparado. Ela quase desmaiou.

– Pai!!! Você está vivo! Mas por que sumiu este tempo todo?

– Minha filha… – Deu um longo abraço nela.

– Eu chorei no seu caixão, papai! – Disse Anelise desesperada.

– É uma longa história, filha. Tentei salvar a sua mãe em nosso barraco, mas não consegui. Depois do incêndio, eu entrei em estado de choque. Perdi a memória por alguns dias e fiquei vagando pelas ruas. Quando recobrei a memória, achei que você tivesse morrido. Eu não te encontrei em nenhum hospital público de São Paulo.

– Mas e o velório, pai?

– Levei 6 meses para provar que eu estava vivo. Isso foi traumático. Deu até na TV, você não viu?

– Não! Eu chorei por meses, no barraco do tio Pedro e do tio Juca. Mas graças a Deus você está vivo! Como eu queria que a mamãe estivesse conosco.

– Eu também queria! A minha vida mudou tanto, Nelise…

– E o que você fez nesse tempo todo?

– Trabalhei muito filha!!! Eu quebrei três vezes. Tentei um restaurante, não deu certo. Comprei um táxi; bati o carro e deu perda total. Há 5 anos, comecei a trabalhar em uma lavanderia como atendente; cheguei à gerência e o dono deixou, no testamento, 3/4 da rede da empresa nas minhas mãos quando morreu. É essa lavanderia que faz o serviço deste hotel.

Um dia vim discutir a renovação de contrato com um dos sócios que é meu amigo e vi você no corredor.

– Mas pai… por que não chegou até mim?

– Tive medo…

– Medo, por quê?

– Você não vai acreditar, filha! Mas essa é outra história! Um dia eu te conto! Você não vai acreditar…

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.