Estupro velado, dentro de casa, pode? Por Angela Piotto.

Sem intenção de adentrar na esfera penalista, adentro com o tema tão antigo, que desde a mais distante recordação de infância de conhecidos – ou até mesmo de familiares – conhecem histórias sobre o ato. Estas tais, que até mesmo nossos antepassados, como bisavós e avós, tiveram conhecimento de algum fato similar, mas que aquietaram-se por não ser permitido falar. Trago à tona o estupro.

Há relatos, índices e comparativos, os quais demonstram que grande parte dos estupros ocorrem no seio familiar ou de amigos. Quem nunca ouviu histórias sobre garotas que, ao sair, mesmo em companhia de amigos, foram estupradas? E, em muitas dessas histórias, se o rol de amigos sabia, por que não fez nada a respeito?

Dentro do seio familiar o grau de absurdo e negligência é ainda pior. Com crianças e pré-adolescentes, ressalto aqui, até a idade legal, sofrendo abusos de parentes sem apoio no âmbito familiar. Quantas dessas crianças, ao procurarem por ajuda, não foram submetidas a surras e mandadas calar? Quantas não foram taxadas de mentirosas e sofreram, além da violência física, violência emocional e verbal?

Aparentemente, parece que existe um tabu social em tratar dos estupros que ocorrem debaixo dos olhos da família. Parece que proteger o mundo de fantasia de família perfeita é melhor do que amparar quem sofre o dano.

Por que trazer à tona casos de parentes que praticaram os abusos sexuais é tão mais assombroso? Por que não se exige justiça para esse estupro da mesma forma que se exige para o estuprador que aparece no noticiário? Por que a criança tem que calar-se? Por que a família não pode saber o que houve, mas a criança tem que conviver com a presença constante do estuprador em comemorações de família?

São tantas interrogações que, mesmo com décadas a fio, não se responde satisfatoriamente. Quantos pais abusaram de suas filhas e as mães fecharam os olhos por razões diversas. E, muitas vezes, mães e filhas em sofrimento sem fim, calaram-se, emudeceram a alma num vazio de dor.

Quantos tios foram “brincar” de passar a mão em crianças – ou manipular partes íntimas -, usando crianças como “brinquedo”? E, não se podia falar nada, senão “a tia vai ficar triste?”. Mas, e a criança? E essa parcela da infância e a tristeza e a confusão emocional, como se fará com tudo isso ?

Quantos adultos, hoje, carregam culpas por anos a fio pensando que foram responsáveis pelo que passaram? Quantos têm sua vida emocional instável, sua vida íntima com dificuldades por anos de traumas?

Em todas as conversas que até hoje vivenciei sobre o assunto, com pessoas que sofreram abusos, em nenhuma a família se posicionou. Em todas as situações a família apenas mandou que a criança se calasse e esquecesse o assunto. Se não, ainda culpando a própria criança – com uma surra por falar.

Infelizmente, parece que o estupro “do cara do jornal” é digno de pena de morte, mas a do “cara” de dentro de casa, pode. Não estou aqui adentrando em penas, ou julgamento. A proposta é trazer a hipocrisia social e o relato de que as vítimas, infelizmente, não são amparadas, na maioria dos casos, de forma protetora e efetiva. E, enquanto o estupro do amigo da festa for aceito, enquanto o estupro do avô, do pai, do tio, do cunhado, forem aceitos, estaremos longe de qualquer forma de humanidade.

Estupro é uma realidade social. A sociedade tem a necessidade de acordar para os abusos que ocorrem dentro de casa e dentre o rol de amigos. Só irá parar essa insanidade que ocorre desde o início dos tempos quando a sociedade parar de aceitar o inaceitável. E, não, dentro de casa não pode. O estupro é crime, seja como for.

Angela Piotto é graduada em Direito, pós-graduanda em Direito do Trabalho, Direito de Família e Psicologia Jurídica. Atua como Terapeuta Integrativa.