ENTRE O VISÍVEL E O PÚBLICO - Parcerias entre o Estado e o Terceiro Setor: 'Máfia da Miséria' ou Bem Público? Por Aline Brêtas.

Padre Júlio Lancellotti, pároco da Igreja São Miguel Arcanjo e coordenador da Pastoral do Povo da Rua em São Paulo.​

Em uma entrevista recente, o Padre Júlio Lancellotti reagiu com firmeza à acusação de que seu trabalho junto à população em situação de rua faria parte de uma suposta “máfia da miséria”: “Máfia da miséria é quem abandona o povo”, declarou. Mais do que uma defesa pessoal, sua fala ressoa como um chamado coletivo: a quem interessa criminalizar a solidariedade organizada?

Inspiradas por essa provocação ética e política – e por experiências concretas de atuação de Organizações da Sociedade Civil (OSCs) em contextos de vulnerabilidade – Layla Mendes, Julia Motta e eu conduzimos uma pesquisa sobre as parcerias entre o Estado e o terceiro setor na área da educação. O artigo, “Poverty Mafia or Public Good? The Role of Government-nonprofit Partnerships in Education”, foi indicado ao Prêmio Stephen Osborne na conferência anual da International Research Society for Public Management (IRSPM 2025) este mês em Bolonha.

O estudo busca responder a uma pergunta direta: quando o Estado financia OSCs para atuar na educação pública, está promovendo o bem comum ou terceirizando responsabilidades de forma opaca?

Utilizando uma base de dados inédita que cobre os 26 estados brasileiros e o Distrito Federal, entre 2009 e 2022, analisamos como o financiamento público a essas organizações impacta os resultados educacionais. Criamos o IDEB Gap, que mede a distância entre o desempenho de escolas públicas e privadas. Os achados são reveladores: o financiamento governamental está associado à redução dessa desigualdade, sobretudo em contextos liderados por governos de orientação à esquerda.

Contudo, o simples alinhamento ideológico entre esferas de governo não foi suficiente para explicar melhorias. É o compromisso efetivo com a equidade que faz a diferença – quando há políticas voltadas à inclusão social e ao fortalecimento da educação pública, o apoio às OSCs deixa de ser paliativo e passa a ser estratégico.

Nosso estudo contribui para desmistificar a imagem dúbia que frequentemente recai sobre o terceiro setor. As OSCs, longe de atuarem como substitutas do Estado, podem funcionar como parceiras legítimas na produção de valor público – desde que haja transparência, estabilidade no financiamento e coerência política.

A criminalização da solidariedade organizada – como a vivida por Padre Júlio – reflete uma tentativa de obscurecer o papel de quem atua nas brechas do Estado. Tornar visível esse trabalho, e reconhecer as condições sob as quais ele contribui para a justiça social, é também tarefa da pesquisa em administração pública.

Na interseção entre o visível e o público, precisamos reorientar o olhar: não para punir quem age onde o Estado falha, mas para exigir que o Estado atue em parceria com quem já constrói o bem comum, todos os dias, desde baixo.

Fonte: Realejo Filmes e TV Brasil/EBC​.

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Aline Brêtas de Menezes é doutora em Administração e mestre em Administração Pública pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/EBAPE). Editora-chefe da Revista Tecnológica de Administração (FGV RETA), sua pesquisa se concentra em geração de valor público, com especial interesse no desempenho de parcerias entre governos e organizações da sociedade civil. Para mais detalhes, vide http://lattes.cnpq.br/1671174414722847