Entre a sobremesa e o cafezinho. Por Renata Quiroga.

A mesa é um móvel, comumente de madeira, firmada em uma tábua horizontal sobre um ou mais pés. A família constitui-se em um sistema de alta complexidade organizacional. Crenças e valores próprios articulam-se com o objetivo de manter a sobrevivência de seus membros e de sua própria instituição. A condição intrínseca à própria história do homem revela-se por ser, a família, a unidade social mais primária da qual pertence a espécie humana.

Sob a perspectiva histórica, o homem sedentário já organizava-se em grupos pelo matrimônio ou a partir de um ancestral. Unidos por laços sanguíneos e vivendo à sombra do patriarca, os clãs sustentavam a identidade cultural e patrimonial de seus agrupamentos sociais.

Desde sempre, a família ofereceu ao sujeito espaço para socialização, exercício de cidadania e desenvolvimento individual determinados por suas características e dinâmicas. Das primeiras formações até a atualidade, houve diversas transformações no semblante da instituição família. As mudanças foram multi determinadas por questões pertinentes aos próprios membros ou alterações nos contextos políticos e sociais.​

Cada período de transição sócio-política e do próprio ciclo vital, consegue exercer no grupo familiar pressão capaz de convocá-lo à adaptação. Este ajuste faz-se necessário à garantia do desenvolvimento psicossocial dos indivíduos pertencentes ao agrupamento. ​Dessa forma, a estrutura familiar é definida, intrinsecamente, na relação com o momento histórico no qual está mergulhada a sociedade que lhe organiza. ​Mudanças externas impactam importante efeito nos grupos familiares. Aliado a isso, a família é peça fundamental para formação e determinação do funcionamento psíquico e comportamento de seus membros.

O percurso da família através dos tempos é a base da construção do indivíduo sob a perspectiva do desenvolvimento humano. A família pré-moderna ou extensa, refere-se ao formato familiar existente entre os séculos XVI e XVIII. Neste, co-habitavam no espaço físico, não somente o casal parental, mas também pais, filhos, netos e agregados.

O predomínio do comando era patriarcal. O pai possuía poder quase absoluto e autoridade indubitável, homens e mulheres viviam em ampla desigualdade. No contexto deste período, pela perspectiva religiosa, Deus era soberano; no espaço político a soberania era do Rei e; no universo familiar, o pai era supremo. Dessa forma Deus/pai/rei constituía-se em uma tríade de poder contínuo na qual cada figura apoiava-se no poderio da outra.

A figura feminina era restrita à procriação e ao trabalho doméstico, tendo na ordem social uma imagem totalmente desvalorizada e submissa ao poder masculino vertical.

As crianças eram consideradas mini-adultos, recebiam educação através de atividades domésticas, em função de não frequentarem as escolas.

O espaço familiar fornecia extrema importância aos idosos, considerados os guardiões da sabedoria e da memória. Estes tinham a função de transmitir, de forma viva, os saberes e valores da história familiar.

A família moderna passou a questionar a problemática do patriarcado, fazendo com que a figura soberana do pai desse lugar à uma paternidade ética. Torna-se uma família mais restrita, sem a participação de avós e outros membros no convívio em um mesmo ambiente.

Como herança da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a família nuclear experiencia o fim da relação hierárquica entre homens e mulheres. Contudo, em uma tentativa de recuperação do poder, o patriarcado enfatiza a competição entre os sexos: o exercício da maternidade e cuidados com o lar como funções principais da mulher versus a posição clássica masculina de comando familiar, fundamentam uma nova questão ético-política.

A idealização da riqueza saiu da expansão territorial do passado à procura de qualidade de vida. A busca de excelentes condições de saúde e educação formam o novo paradigma de prosperidade dos povos.

Nesse cenário os novos arranjos e papeis são desenhados: pelo idoso como símbolo de improdutividade, destinando-se a ele um lugar marginalizado pela associação à morte social; pela criança como representante do futuro e, portanto, alvo de grande investimento médico e pedagógico; pelo homem ainda como detentor do domínio do mercado de trabalho e gestão do espaço público e; pela mulher como a responsável pelo investimento doméstico de zelar pelas crianças.

​Nos tempos modernos, esse novo formato familiar viveu a chegada, de outras figuras femininas: a infanticida em seu estado puerperal que abandona ou mata seus filhos; a ninfomaníaca e sua inesgotável volúpia e; a prostituta.

A psicanálise freudiana via nesse panorama o imaginário daquelas mulheres que não passavam suas fantasias às experiências e moviam-se em direção à produção de neuroses. A Histeria e a melancolia ganharam força e montaram as peças desse quebra-cabeças do ideário feminino no início do século XX.

O movimento feminista que retirou as mulheres de um lugar circunscrito à maternidade e as lançou em outras conquistas, produziu grandes transformações sociais para o mundo contemporâneo. O casamento dissociou-se da ideia de eterno e não é mais a base da família; novas conjugações das figuras parentais trouxeram aos filhos um outro olhar sobre as representatividades da autoridade; surgiram as famílias mono parentais, nas quais os filhos ficam sob os cuidados de somente um dos pais; e as família handicapé definidas pela incompletude funcional e entrega da educação dos filhos para as instituições de ensino.

O idoso resgata certa parte de sua colocação na sociedade que vê na terceira idade alvo de ações sociais e políticas públicas ligadas ao lazer e ao esporte.

A contemporaneidade assiste a busca da mãe por alocar-se existencialmente diferente de outras épocas. Ocorre uma afetação na subjetividade infantil como desinvestimentos narcísicos e aumento da tirania infanto-juvenil, a exemplo do bullying.

A família diminuiu sua robustez no viés da autoridade, surgiram patologias psicológicas como síndromes do pânico, melancolia, transtornos compulsivos de abuso de álcool e drogas e outras relacionadas a transtornos alimentares.

Além da soma de tantas transformações, a atualidade é bastante definida pela presença da tecnologia da comunicação. A despeito de toda maravilha tecnológica, as relações interpessoais sofreram seus danos com a intermediação midiática da empatia. A paisagem do espaço de convivência é bastante semelhante em diversos lugares: todos refletidos sobre a tela do celular e outros dispositivos eletrônicos.

Não há retrocesso possível para o mundo na palma das mãos. Seria, inclusive, uma grande perda para a humanidade caso voltássemos aos processos arcaicos de comunicação e desenvolvimento tecnocientífico.

Contudo, nos sítios de convivência, a interlocução é, na maioria das vezes, intervencionada por representações gráficas cuja função é comunicar uma ideia, emoção ou sentimento. Não só os conhecidos emojis funcionam como doublé do corpo emocional do sujeito.

Curtidas, seguidores e outros jargões das redes sociais cumprem o papel de transmitir a fruição relacional dos indivíduos da contemporaneidade. A grande questão que esta forma de relação convoca para questionamento fala sobre a distância e pouca nitidez entre as pessoas. Enquanto, se está em um show no qual a grande parte filma o que está acontecendo ao vivo, corremos o risco de sermos o hard disk (HD) externo de nosso próprio celular. Nossa memória não vai registrar o amalgamento dos fatos e suas respectivas emoções; vai sequer, rever o que se viveu, ao vivo e a cores, em seu post social.

A tecnologia e sua genialidade aproximaram os universos e distanciaram os diálogos. O Iluminismo nos trouxe o gigantismo da mecanização que hoje tão bem é representado pelas redes sociais… a vida alheia que nos alheia à vida.

Em tempos de isolamento e restrições sociais, chega a doer o peito a saudade da conversa na grande família. A conversa une, esclarece, aproxima, acolhe a todos e ajuda na caminhada de mãos dadas sobre o trilho da solidariedade.

Qualquer que seja a forma familiar vigente, a representatividade simbólica da mesa do jantar deve ser reinventada sob o entendimento de se resgatar a dialética entre seus membros. Sejam quantos forem os pés que sustentam e alimentam a conversa, iluminar as relações pela via da palavra pode ser uma boa ideia para acontecer entre a sobremesa e o cafezinho.

Renata Quiroga é psicanalista, coordenadora de Serviço Social, Psicologia, Psicanálise e Psicopedagogia – PSFP.