Recentemente, finalizei a leitura do livro “Ainda estou aqui”(*), obra autobiográfica de Marcelo Rubens Paiva que deu origem ao filme homônimo vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional de 2025, prêmio até então inédito para o Brasil. Uma leitura intensa e profunda que ainda ressoa em mim em diversos aspectos e camadas, motivo que me levou a torná-la tema desta coluna.
A obra, que serve de testemunho sobre as consequências da ditadura e a luta pela verdade e justiça, tem como tema central a memória. Escrito em primeira pessoa – o que nos possibilita imergir nas emoções e experiências do autor -, o livro é dividido em três partes, sendo a primeira delas voltada à infância de Marcelo e sua relação com a mãe, Eunice, que, no presente da narrativa, enfrenta o avanço da doença de Alzheimer.
Um dos fatores que essa leitura ainda reverbera em mim é ter tido a oportunidade de ler alguém dissertar de forma tão comovente e delicada sobre o que são, como se formam e o que representam nossas lembranças e recordações. “A memória é uma mágica não desvendada. Um truque da vida. Uma memória não se acumula sobre outra, mas ao lado. A memória recente não é resgatada antes da milésima. Elas se embaralham”, define o autor logo nas primeiras páginas.
É fascinante pensar sobre o poder desse instrumento em nossas vidas para a compreensão do passado, a consolidação do presente e a projeção do futuro. E é, a partir dessa perspectiva, que Marcelo tece as outras duas partes do livro que ganharam as telas de cinema do mundo todo: a segunda, sobre o impacto da prisão e do desaparecimento de seu pai, Rubens Beyrodt Paiva, engenheiro civil e ex-deputado federal cassado, morto sob custódia dos militares em plena ditadura; e a terceira, relativa à luta de Eunice por justiça, pelo reconhecimento oficial da morte do marido e as consequências emocionais que esse episódio teve para toda a família Paiva. Sempre presente no decorrer a história, a memória se revela fundamental na construção da identidade familiar e nacional.
Já mais para o final da obra – e não se preocupe que não darei spoilers -, Marcelo faz uma reflexão poética sobre o funcionamento da memória e a importância da separação entre passado e presente. “O passado é conservado por ele mesmo. Nos segue por toda a vida. Nosso cérebro foi feito para guardar o passado e trazê-lo à tona quando precisamos, para esclarecer uma situação do presente. Se não fosse esse truque do cérebro, acharíamos que o passado continua presente. Enlouqueceríamos”… escreve ele. Logo depois, continua: “Mas e quando o presente não faz sentido? Quando ele passa a não existir, vira um furacão de imagens, um vento que impede de se enxergar com clareza, é substituído pela memória? Não. Pois, como não precisamos dela, já que não existem questões a serem esclarecidas no presente, a memória também se apaga”.
Enfim, Marcelo me fez e ainda me faz pensar muito sobre o que seria de nós sem a memória e como é tênue essa linha entre lembranças e esquecimentos. A tendência que algumas pessoas têm de reter apenas certas informações e recordações enquanto “apagam” ou ignoram outras, a chamada memória seletiva. Como cartas, documentos, fotografias, filmes, livros, músicas, entre diversos outros recursos, nos ajudam a construir nossas percepções e a formar nossas memórias e opiniões. E como não refletir sobre como a comunicação institucional e a memória se entrelaçam na medida em que uma reforça a outra: enquanto a comunicação molda a forma como a memória é construída e disseminada, a memória fornece os elementos simbólicos e históricos que sustentam o discurso institucional.
De fato, esse é um tema comum a todas as áreas e seres humanos. Falar de memória – inclusive de sua perda -, é falar de vida. É reconhecer que somos feitos de experiências, sentimentos e lembranças, e que preservar a memória é, em última instância, preservar a nossa própria identidade. Individual e coletiva. Um salve à literatura e ao cinema nacional! E não só, mas a toda cultura brasileira.
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(*) Ainda estou aqui. Marcelo Rubens Paiva. 1a. ed. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2015.
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Cristina Rispoli d’Azevedo é graduada em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e especialista em Gestão Estratégica da Comunicação pelo Instituto Brasileiro de Gestão de Negócios (IBGEN). Apaixonada por contar histórias e leitora voraz, é uma comunicadora empreendedora que atua como assessora de imprensa, produtora de conteúdo, redatora e correspondente em Portugal.