Em tempos de pandemia, ouçamos mais médicos e cientistas e menos economistas! Por Bruna Cataldo.

Estou escrevendo este texto no dia 26/03, em uma quarentena que já dura 13 dias. Normalmente, planejo um tema que ficou em evidência, pesquiso o que tem sido falado e escrevo com mais antecedência, mas não são tempos normais. Em um mês, parece que se passou um ano. Ao longo de março, diversos debates econômicos apareceram e causaram furor: a divulgação oficial por parte da equipe do governo de um conceito errado economicamente (PIB privado) para minimizar os resultados medíocres de crescimento e a incapacidade de Paulo Guedes de coordenar com o Congresso para enviar as reformas tributária e administrativa, por exemplo. Planejava escrever sobre isso, porém uma realidade mais grave se impôs: uma pandemia sem precedentes no século com reflexos sociais não vistos desde a segunda guerra mundial. Em meio ao excesso de informações e potencial caos social criado pelo medo da população ao ver sistemas de saúde colapsados em países desenvolvidos, o Brasil se apresenta com um debate quase inexistente no resto do mundo: a criação da dicotomia entre economia e saúde. Empresários, equipe econômica do governo e investidores estão sendo colocados no centro da questão e questionando orientações sanitárias do mundo todo sob o suposto pretexto que a recessão causada pela parada da economia seria mais drástica que o vírus.

O primeiro erro é que a dicotomia é falsa: sim, recessões geram problemas sociais graves, mas crises de gigantesca proporção na saúde também geram recessão. Falta a compreensão que o choque na economia não é a quarentena, é o vírus. O vírus se impõe e cria pânico social independente da vontade dos economistas. As próprias pessoas param a economia porque o número de mortos subindo e hospitais lotados as fazem parar de sair e consumir. Números de infectados exponencialmente maiores reduzem a mão de obra disponível para produzir. Capital humano se perde (e de vez, não só no curto prazo) com cientistas, médicos e líderes políticos estando em maior risco de contaminação. Pessoas morrem não só do vírus, mas de outras doenças das quais não morreriam porque falta de capacidade de atendimento. Se o governo não impõe quarentena para parar economia e salvar pessoas, o vírus para a economia quando cria pilhas de pessoas mortas e hospitais são tão saturados que precisam escolher quem vive ou morre. Questão, portanto, não é se a economia vai parar ou não, mas quem vai impor essa paralisação e quantos mortos estarão associados a ela. Quanto mais cedo paramos, menos tempo precisaremos continuar assim e menor será baque na economia. É preciso aceitar o quanto antes que recessão é inevitável, o que é evitável é sua gravidade e o quanto vamos colaborar para salvar pessoas e suas condições mínimas de vida. As estimativas são de que, dependendo de como o governo agir, a taxa de crescimento do PIB pode variar entre -2% e -5%. Só temos controle portanto, sobre em que ponta do intervalo ficaremos.

O segundo erro é usar como referência países como Japão e Coreia para defender flexibilização da quarentena de modo que a economia possa funcionar sem que o vírus se espalhe de forma exponencial. Primeiramente, os hábitos culturais desses países já facilitam a redução do contágio. Para além disso, houve uma postura de testagem massiva para que pessoas contaminadas e assintomáticas fossem identificadas e pudessem ficar em casa de modo que só saísse quem estivesse saudável. Como 2/3 do contágio é justamente de pessoas jovens contaminadas e sem sintomas, identificá-las e deixá-las de quarentena se mostrou eficaz em evitar o completo lockdown. Além disso, ambos mantêm diversas medidas de isolamento com uma variedade de estabelecimentos fechados e controles rígidos em aeroportos. Sendo assim, olhar apenas para uma quarentena reduzida e assumir automaticamente que é possível agir da mesma forma sem fazer as políticas complementares que garantiriam o resultado é apenas apresentar meia verdade para sustentar narrativa e evitar os custos políticos de uma crise dessa proporção.

Por fim, o terceiro e mais fundamental erro é o próprio objeto de debate. Economistas e profissionais da área financeira estão acostumados a ser atores centrais em debates de políticas públicas. No entanto, esse não é debate como outros: pandemia, guerra, tragédia natural e situações do tipo não operam na mesma lógica que situações de normalidade. O que está em questão são centenas de milhares de vida cuja ameaça principal é um vírus sobre o qual apenas profissionais da área da saúde podem fazer afirmações tais como nível de contágio, quanto tempo é necessário manter isolamento, que tipos de tratamento funcionam. Não é hora de sermos atores principais de nada, é hora de sermos coadjuvantes. Nosso papel é viabilizar tudo que profissionais de saúde precisam para nos tirar dessa situação com o menor número possível de causalidades. Nosso papel não é debater ‘o que fazer’ na pandemia, apenas ‘como’. Significa que foco dos economistas deve ser apenas sobre como vão garantir que demandas da saúde sejam respeitadas sem que muitos percam suas rendas e empresas entrem em falência. Como em um filme, somos os amigos do personagem principal que contribuem na jornada para que ela seja um sucesso, mas a batalha em si não é nossa. Participamos, mas não lideramos. Fundamental agora é ouvir mais infectologistas e menos economistas/empresários, e a recomendação deles é: quarentena generalizada e fechamento de todo comércio não essencial para que a curva de contágio seja menor e hospitais tenham capacidade de atender doentes tanto da Covid-19 como outros que dependem do sistema.

O caminho pelo qual o Presidente Bolsonaro resolveu seguir com apoio de investidores, líderes religiosos e empresários já foi testado por Itália, Espanha e EUA. O primeiro está vendo caixões saindo em filas de caminhões para cidades menos afetadas e tem pessoas cada vez mais novas morrendo por dificuldade no atendimento. Motivo? Levou semanas para parar porque queria manter turismo, principal atividade econômica do país. Em 2 semanas o caos se instalou, economia parou de qualquer forma e estamos presenciando mortes em proporção sem precedentes em tempos de paz desde a gripe espanhola, quando condições sanitárias e tecnológicas nem se comparavam às de hoje. Espanha está registrando mortes em ritmo cada vez maior e parecido com italiano pelo mesmo motivo. Os EUA de Trump já têm mudado o discurso sobre reverter isolamento rapidamente ao ver o estado de NY próximo ao colapso. Sendo assim, sabe-se que caminho deu errado onde foi testado, mas há quem defenda que o Brasil o siga mesmo assim. A esperança do momento são governadores, que têm se destacado e respeitado as recomendações da OMS.

Bom, e o que economistas podem fazer? Qual o papel do governo, do Estado, nesse momento? Primeiro, acatar toda e qualquer recomendação da comunidade científica da área da saúde. A partir dela, construir planos de contenção que protejam trabalhadores e empresas. Como? Desde que entrei no curso de economia, nunca vi consenso tão bem formado na comunidade internacional: é hora de gastar. Economistas heterodoxos já são favoráveis a políticas fiscais expansivas e defendem aceleração desse processo, e economistas liberais e ortodoxos – defensores habituais da necessidade de controle dos gastos e dívida – também estão, em peso, recomendando que se gaste o quanto for necessário. Incoerente? Não. Na visão deles, um país não deve gastar mais do que arrecada e se endividar em tempos normais, mas pode e deve em casos assim. Kenneth Rogoff e Gregory Mankiw, grandes referências do conservadorismo fiscal, já se pronunciaram a favor de gastos ilimitados para viabilizar a proteção da renda e das empresas, por exemplo. Mas o Brasil poderia fazer isso mesmo já entrando na pandemia com economia frágil? Sim! Teria que aumentar a dívida pública em grandes proporções, mas essa é uma questão que economistas sabem que podem resolver posteriormente. Vidas não podemos trazer de volta.

O gasto em questão deve ser feito em basicamente 3 frentes: suprir o sistema de saúde, reforçar políticas sociais que protejam a renda e o emprego enquanto pessoas não puderem trabalhar e criar mecanismos de alívio para empresas – principalmente micro e pequenas – de modo que elas não precisem demitir seus empregados ou fechar. Essas medidas garantem não só a preservação da condição de vida das pessoas, mas que a recessão seja mais leve. Protegem o bem-estar do povo e da economia porque, como disse, não existe dicotomia entre ambos. De forma simplificada, essas medidas protegem a economia além do bem-estar porque garantem manutenção das capacidades produtiva e de consumo da economia ao minimizar fechamento de empresas e perdas de renda e emprego. Quando a crise passar, as empresas terão condição de produzir e as pessoas de consumir. Não será suficiente para impedir uma recessão, mas vai aliviá-la e evitar que vire depressão. Economistas e profissionais da área social aplicada das mais variadas vertentes chegaram a um consenso sobre a importância de agir nessas 3 frentes, divergindo apenas na forma de ação. Liderando debate estão Mônica De Bolle, Armínio Fraga, Laura Carvalho, Pedro Rossi, Marcelo Medeiros, Tatiana Roque e outros. Algumas (não exaustivas) alternativas que têm sido bastante debatidas entre os envolvidos são:

– Implementação de Renda Básica para todos os inscritos no Cadastro Único em primeiro momento porque são pessoas identificáveis e posterior tentativa de identificar os informais para também os incluir na política;
– Aumento do valor do Bolsa Família;
– Criação de política de manutenção de empregos com governo autorizando redução de carga horária com redução de salários acompanhada de aporte do governo para compensar trabalhador pela renda perdida;
– Aportes de algo entre 5% e 10% do PIB para o SUS;
– Regulamentação do imposto sobre grandes fortunas, já presente na CF88, para aumentar arrecadação;
– Distribuição de vouchers para alunos de escolas públicas para compensar perda da merenda;
– Desoneração de parte da folha de pagamento das empresas enquanto durar a crise;
– Reconversão industrial para que indústrias que tenham capacidade tecnológica e insumos para produzir material médico e sanitário continuem funcionando, alimentando o SUS e garantindo continuidade da produção.

Independente do desenho, o importante é decidir e montar um plano redondo e robusto para ser implementado o quanto antes. Nossa população e economia dependem disso. As duas! Juntas! E gostaria de reforçar: ouçam cientistas e médicos. Ouçam a OMS. Desconfiem de qualquer profissional da área financeira que opine nas questões sanitárias, não é nosso papel. É hora de dar o palco para a área da saúde. Nos resta ajudar e aplaudir. Para finalizar, uma reflexão: a dicotomia saúde versus economia não existe, mas se existisse, escolher economia não seria uma falha argumentativa ou opinião, seria falha de civilidade.

Bruna Cataldo é economista pela UFRJ e mestre e doutoranda em Economia pela UFF. Suas pesquisas atuais são na área de Educação e Economia Criativa, com enfoque em políticas públicas. Pesquisou e eventualmente colabora em trabalhos de Economia da Inovação. É defensora de uma abordagem mais interdisciplinar da Economia.