Despedida. Por Juliana Fernandes Gontijo.

Anos sessenta. Últimos dias de janeiro. A estação de trem estava razoavelmente cheia. As pessoas, de um lado para o outro, aguardavam a chegada ou a partida de um trem. O cheiro de pipoca quentinha inebriava… E como cheirava com toucinho de porco, uma delícia!

Naquele dia, algo estranho ocorria no local: palhaços faziam a alegria das crianças.

Alguns casais estavam unidos por um longo beijo de despedida real ou mesmo de um “até breve”. E uma pergunta pairava no ar: “Quando eu voltar, quem estará me esperando?”. Às vezes, era difícil entender o que algumas pessoas falavam, tamanho era o burburinho daquela gente.

Centenas de malas, muitas amontoadas, atrapalhavam os passantes. Era praticamente impossível distinguir quem era do grupo das malas de madeira vermelha ou das xadrezinhas que, de tão pequenas, pareciam guardar apenas um par de botas de couro.

O Sol se escondia e o colorido celeste era uma mistura de azul com alaranjado… lindíssimo! Raras nuvens percorriam o céu daquela tarde.

Em dado momento, uma garota magra, de aproximadamente uns 18 anos, chamou-me a atenção. Cabelos pretos lisos, pouco abaixo dos ombros. De semblante triste, contudo decidido, a moça tinha seus lindos olhos azuis longe da estação. Trajava um vestido longo rosa-claro, de mangas afofadas, amarrado nas costas com um laço de fita da mesma cor, à altura da cintura. Na cabeça, um delicado chapéu trançado em palha, também com laço de fita, pequeno, do lado esquerdo. Sapatos pretos bem engraxados lhe cobriam os pequeninos pés. A menina mais parecia uma boneca de porcelana. Na sua mão direita, uma única mala marrom.

Um pouco mais afastada, a uma distância de uns dez metros, perto de uma escada, estava uma senhora também magra, portando um semblante (in)digno de uma futura subida ao Calvário. O que mais me intrigou foi que ela era uma versão levemente marcada pelo tempo da garota magra que estava na estação; entretanto, os cabelos eram bem mais curtos. Presumi ser a mãe da suposta viajante, porque era bastante visível a semelhança entre as duas. Juntos daquela mulher, de rosto marcado pelas circunstâncias da vida, possivelmente estavam o marido e mais quatro irmãos (três meninos pequenos, franzinos e um bebê), imóveis diante da cena da partida. Ao fazer um gesto de que iria até o local, o homem a segurou e ela deixou cair uma lágrima no rosto.

O olhar da menina-moça ainda permanecia longe, mas num atmo, percebeu alguém vindo ao seu encontro. Lentamente, virou-se contra a linha do trem e viu a mãe a pouco menos de um metro. As duas choraram. As bochechas mais pareciam duas maçãs; a vermelhidão era intensa no rosto da menina. Possivelmente o coração batia forte, acelerado. Foram tristes os olhares trocados, porém uma diferença era fato naquele momento: a decisão da viagem era verdadeira. Jamais seria possível discordar com a ideia da separação, porém, não havia mais volta.

Algumas pequenas frases foram pronunciadas, mas a garota não escutou. O apito soado da locomotiva de cores negras era ensurdecedor. A fumaça começava a embranquecer a estação. E a família vai percebendo que a permanência da ex-menina, agora mulher, naquela cidadezinha já era algo remoto. Aquele monstro de quatro vagões vinha chegando, chegando para levar a garota (sim, a filha primogênita)…

O cheiro inebriante da pipoca com o toucinho de porco cedeu lugar ao odor de lenha queimada. O ar ficou pesado.

Iniciou-se um empurra-empurra. Mães chamam seus filhos, a fim de não perderem o trem das onze. Malas e malas, retiradas do chão, davam lugar aos inúmeros pés dos viajantes.

A moça curvava-se para pegar a sua, enquanto a mãe chorava convulsivamente.

O trem parou e as portas se abriram. A garota precisou de apenas cinco passos para entrar no segundo vagão. A mãe se apressou em direção à filha. O ouvido aguçado percebeu a aproximação. A única resposta foi uma virada do corpo junto ao aceno de mão. O rosto coberto de lágrimas “dizia”: “O mundo lá fora me espera. Não posso perder mais tempo. Até algum dia…”.

A garota entrou apressadamente no vagão, a fim de não ter o braço seguro pela mãe, impedindo-lhe a partida. Assentou-se numa poltrona do lado direito e colou o rosto na janela. As portas se fecharam.

A mulher, que ainda chorava convulsivamente, parou num impulso. O trem partiu, levando consigo a sua filha que está em busca de um mundo novo. É difícil acreditar, mas do mundo são os filhos; não há como criá-los numa redoma de vidro.

Perto da escada, o pai e os outros irmãos assistiam perplexos à partida da locomotiva, que se perdeu na longínqua ferrovia. Os olhares bruscamente se desviaram para a mãe da moça que desfalecia no chão.

Assustadas, as pessoas começaram a gritar por socorro.

Imagem: Pixabay.

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.