CRÔNICA - Um manuscrito na livraria. Por Juliana Fernandes Gontijo.

Soraya gostava muito de ler. Desde pequena, aprendeu rápido com o pai em casa. Nas horas vagas, a faxineira tinha sempre um livro nas mãos. Não interessava o assunto, bastava ver o objeto e “corria” logo para ler. Naquele tempo, o celular ainda não estava na moda, assim os livros eram um ótimo passatempo para a jovem.

A moça trabalhou em várias residências, clínicas e, por onde passava, clientes e patrões ficavam admirados com a inteligência dela. Alguns a demitiram em menos de três meses quando descobriam que ela passava boa parte do tempo lendo, mesmo após terminar o serviço.

Certa vez, enquanto procurava um novo trabalho, ficou sabendo da abertura de uma grande livraria na cidade. Pediu a um amigo ajuda na redação do currículo para ela e levou até o comércio.

Na entrega, um homem perguntou:

— Por que a senhorita procura um emprego aqui?

— Simples, porque eu sou apaixonada por livros.

— As nossas vagas estão abertas somente para vendedores e a senhorita é faxineira.

— Perfeitamente, para fazer faxina mesmo! Mas é que eu gosto muito de ler, entende?

— Lamento, não temos vaga.

— O senhor não gostaria de um comércio limpo, perfumado?

— Qualquer pessoa gosta!

— E eu posso transformar a sua loja nesse lugar perfeito. Tenho certeza, vai gostar do meu trabalho.

— Preciso pensar! Volte amanhã às 15 horas.

— Sim, claro!

No dia seguinte, Soraya retornou à loja no horário combinado.

— Procuro por um senhor, acho que é o gerente, mas não sei o nome dele. — Disse para uma mulher sentada perto do balcão do caixa.

— Ainda não temos gerente, só o proprietário, o senhor Armando. É aquele na escada. Mas eu posso ajudar, moça?

— É só com ele. — Falou, segura de si. E continuou:

— Não sabia que ele era o dono da livraria. Obrigada.

Chegando à escada:

— Senhor Armando, conforme nosso combinado, são 15 horas.

— Eu te conheço, moça?

— Sim, nós conversamos ontem. Meu nome é Soraya, entreguei o currículo para a vaga de faxineira.

— Ah… eu me lembro. Como falei, não temos vaga.

— Se não tem, por que pediu para eu voltar? Eu gastei dois ônibus para chegar aqui. E a passagem não está barata.

— Seu currículo me chamou a atenção. Vi que trabalhou na casa de Wenceslau Duarte.

— Exato! Lá, eu tive acesso à primeira coleção de enciclopédias. A minha paixão pela leitura e pesquisa virou amor!

— Fiquei sabendo que a senhorita deu trabalho a ele.

— Há um engano, senhor. Eu…

— Ele já me falou muito sobre você. E gostei de ouvir. Está contratada. Traga seus documentos amanhã e já vai começar a trabalhar. Vamos abrir a loja na próxima semana e preciso de tudo em ordem para a inauguração.

Despediram-se.

No outro dia, Soraya estava cedo na loja. Era o primeiro dia de trabalho. Estava feliz com uma nova oportunidade, bem diferente de todas as outras. Naquele tempo, contratar uma pessoa em qualquer empresa era bem menos burocrático.

Armando pediu a ela que limpasse uma estante no fundo da loja onde estariam armazenados os livros usados, considerados “sebo”.

— Leia o assunto na ficha catalográfica e classifique cada livro para separar nesta estante. — Disse enquanto indicava o local da ficha dentro do livro. Preciso saber o quanto você entende do assunto. Se não der certo, tudo bem, tentamos a vaga para faxina.

— Verei em que posso ser útil. — Falou Soraya.

Depois de algumas horas de esforço no trabalho, ela, enquanto puxava um livro na estante, se surpreendeu com outro que caiu ao chão. Abaixou-se e sentiu um aroma de rosas vindo do livro com bordas de páginas prateadas. Semelhante a um manuscrito, claro, não tinha ficha catalográfica. “Histórias de uma família ao longo do tempo”. Seria um livro de lembranças ou uma espécie de diário? Ela teve um sobressalto. O autor tinha nada menos que o nome de seu bisavô por parte de pai: Honório José de Freitas.

“Quanta coincidência” — Pensou ela.

Abriu o livro e começou a ler as páginas amareladas pelo tempo. Ano: 1886.

Estranhamente, Soraya teve a sensação de que seria a história de sua família, mas como?

Pulou algumas páginas e encontrou o nome de uma de suas avós, Maria Helena de Freitas Jacinto, conhecida por “Lena”. Uma senhora do interior de Goiás que vivia do plantio de batatas. Continuou a ler mais algumas páginas. As coincidências não paravam por ali.

Bastante surpresa, passou mais alguns capítulos até que começou a ler os relatos das viagens de Dona Lena, sua avó. Ela foi a passeio ao interior do Maranhão, onde conheceu Carlos Afonso Trindade, curiosamente, o mesmo nome de seu avô.

Em dado momento, foi interrompida por Armando:

— No primeiro dia de trabalho, Soraya? Por isso, meu primo a demitiu.

— Desculpe, senhor Armando. É que…

— Continue limpando as estantes, por favor.

— E este livro? Eu nunca o vi!

— Pode acreditar! Encontrei no fundo da estante. E é a história da minha família.

— Valha-me Deus, menina. Não é possível!

— Sim, veja! — Mostrou a carteira de identidade que estava no bolso da blusa. Esse Carlos Afonso Trindade é meu avô. O meu pai tem “Filho” no sobrenome e meu irmão, “Neto”.

— Coincidências de nomes existem em qualquer canto!

Armando tomou o livro das mãos da funcionária. Pulou para o último capítulo. Os dois, juntos, começaram a ler e se arrepiaram ao mesmo tempo.

Antes do fim da história, algo mais surpreendente:

“Meu filho vai se casar em Minas Gerais com Elenice Vieira e vai ter dois filhos: Carlos Afonso Trindade Neto de Freitas Vieira e Soraya Trindade de Freitas Vieira.

Minha querida neta vai parar os estudos a fim de começar a vida como faxineira, porque vai precisar ajudar os pais nas despesas de casa. Porém, tudo vai mudar com o primeiro emprego na casa do Wenceslau, homem muito rico e dono de uma tecelagem. Nesta casa, ela vai conhecer a primeira coleção de enciclopédias.

— Meu Deus, menina! Que “diabo” de homem era esse seu bisavô? Um bruxo? Vidente de um terreiro? Nunca vi este livro aqui. Eu não comprei isso. E olha o meu nome nesta página. Inacreditável.

— Eu só sabia que meu bisavô gostava de contar histórias.

Ele continuou a leitura:

“Soraya vai se tornar uma importante dentista, reconhecida no Brasil inteiro. A não ser que ela mude o seu destino”.

Eles fecharam o livro e se abraçaram. Armando olhou no fundo dos olhos de Soraya e perguntou:

— E, então, menina? Você vai querer seguir a “premonição” deste manuscrito prateado e com aroma de rosas, ou vai mudar o seu destino?

— Vou seguir e continuar a história do meu bisavô, senhor Armando. Devo isso a ele e a meus pais!

Com um sorriso fraterno no rosto, Armando segurou a mão da nova funcionária, dizendo:

— Estou com você, Soraya! Vamos juntos continuar a história que seu bisavô, Honório, escreveu lá em 1886.

Imagem: Toshiharu Watanabe por Pixabay.

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Uma redatora apaixonada pela escrita criativa, cultura de maneira geral, que ama escrever, contar histórias reais ou fictícias.