Lúcia, desde criança, olhava aquele senhor como se o conhecesse de algum lugar. Amâncio era um antigo cabeleireiro da cidade e gostava de contar muitas histórias. Entre um corte de cabelo ou o aparo de uma barba, sempre tirava um tempo para um cafezinho ou ter uma boa prosa com algum freguês.
A cabeleira branca e os óculos de modelo mais antigo davam a ideia de um senhor de idade avançada, uma vez que a barbearia “Irmãos Faria” tinha tradição de quase meio século naquela cidade pequena.
Enquanto ele contava seus relatos, Lúcia o encarava fixamente, tentando se lembrar de onde o conhecia. Vez por outra, falava dos antepassados. Narrava histórias do antigo time de futebol da fazenda do vilarejo vizinho. Dava notícias da prefeitura, da delegacia, da igreja, do botequim da rua de baixo.
Ela mesma não entendia o motivo de tamanha afinidade com Amâncio. Desde criança, quando a mãe dela, Maria Elvira, pedia que ela fosse à mercearia, perto da praça principal, logo ia dizendo:
— Vá num pé e volte no outro. Nada de parar na Barbearia do Amâncio. Não gosto daquele homem.
A menina ia crescendo, porém, desobedecendo à mãe. Afinal, aquele homem nunca lhe havia feito “mal” algum. “Qual seria o problema entre os dois?” — Pensava ela.
Lúcia gostava apenas de ouvir as histórias dele. Às vezes, ele oferecia a ela um biscoito de polvilho, doce de leite, ou requeijão de rapa. Ela jamais aceitou qualquer oferta do barbeiro. Ficava assentada na porta do estabelecimento, somente escutando a prosa do homem com seus clientes.
Alguns falavam sobre geografia, política da época, outros sobre a missa da igreja. Havia os que davam notícias da cidade vizinha… E quando alguém queria saber notícias de Lúcia, era só ir à porta da barbearia e lá estava a menina.
Eram muitas histórias que ela ouviu desde criança. Na adolescência, a mãe passou a implicar ainda mais com as “idas” de Lúcia ao local. “Seria um ‘amor’ impróprio?” — Às vezes, pensava a mãe. Ela jurava à mãe que não. No entanto, continuava tentando impedir a filha de ir ao local.
Lúcia, porém, não dava ouvido, pois, na sua mente, estava certa de que havia algo estranho na fala de Maria Elvira.
Numa chuvosa tarde do frio mês de julho, Lúcia chegou da lida na roça e disse:
— Minha mãe, hoje precisamo conversá. Qual é o poblema da sinhora com seu Amâncio?
— Nada, filha. Só preocupação de mãe.
— Sei… E aquela caixa de palha redonda que fica no fundo da pratilera do quarto?
— Nem mexa naquela caixa ou vai se arrepender. Falei, filha, é preocupação, porque já vi falar que esse homi não presta.
— Por que num presta, mãe? Quem contô?
— As beata da igreja. A voz do povo é a voz de Deus, filha. Já dizia sua avó. Vô prepará a janta. — Disse a mãe, indo para a cozinha.
— Mãe, não vou saí acreditano nas amiga da igreja. Tem alguma coisa errada aí.
— Filha, escuta sua mãe. Aquele homi num presta. O feijão até queimô, viu? Meu Deus! — Disse, desesperada, olhando a panela sobre o fogão a lenha.
Lúcia e Maria Elvira assentaram-se à mesa para jantar. Elas não conversaram mais naquela noite.
A moça passou dias tentando entender o que havia de tão estranho na conversa da mãe e na atração que sentia por Amâncio. Por que aquele sentimento era tão diferente? Não era amor de mulher para homem, mas algo além disso.
Julho terminou e ela estava resolvida: como a conversa com a mãe já havia esfriado, resolveu ter uma prosa com Amâncio, porém não deveria ser na barbearia. Sua mãe iria fazer uma pequena viagem com as beatas da igreja e Lúcia preferiu não ir.
— Por que você não vai comigo, filha?
— Mãe, a sinhora sabe que não gosto dessas beata fofoqueira da igreja.
— Filha… Não julgue aqueles que não conhece.
— Mãe…
— Também não vai ficar na porta daquele fío do demônio, o Amâncio.
— Vai com Deus, minha mãe! — Disse Lúcia, dando um beijo em seu rosto e fechando o portão de ferro do quintal.
“É hoje que seu Amâncio vai ter uma boa surpresa” — Pensou a filha de Maria Elvira.
Lúcia foi até o quarto da mãe e tirou, do fundo da prateleira, a famosa caixa de palha redonda. Ao balançá-la, percebeu que estava vazia.
Indignada por uma caixa de palha da qual a mãe sempre fazia suspense, ela a arremessou contra a parede e, quando o objeto bateu, despregou dele um envelope envelhecido. Ela pegou depressa e o abriu. Dentro, havia uma fotografia com Maria Elvira, um bebê de colo, que muito se parecia com as fotos antigas de Lúcia. O homem era semelhante a Amâncio, porém bem mais jovem. No verso, estava escrito: “Para o grande amor da minha vida, Maria Elvira.”
— Amâncio? Meu pai? Não pode ser! — Gritou Lúcia sozinha.
Ela correu até o quarto; pegou uma blusa preta velha, pois ainda era inverno; apanhou a chave de casa; colocou a foto num dos bolsos e saiu em direção à barbearia Irmãos Faria.
— Preciso falá com o sinhô, hoje, seu Amâncio.
— Não posso, Lúcia. Tenho que ir até a fazenda da família.
— Eu vô junto.
— Já disse, não posso te dá atenção.
— Só quero te fazê uma pergunta!
— Então faça.
— Não é bem assim, Amâncio. Vô te mostrá uma coisa.
— Mostra agora! Aproveita que não tem freguês aqui.
Ela abriu o envelope e foi direto ao assunto:
— Lembra do nome deste bebê?
— Como eu vô esquecê? É você, filha!
Lúcia estremeceu, tentando não acreditar no que escutava.
— O quê? Qué me beliscá para sabê se tou sonhano? — Ela suava frio, tremia muito, o corpo quase desfalecia, os olhos estavam arregalados. — Só pode sê mais uma das história que o sinhô tanto conta.
Amâncio, percebendo que a situação poderia se complicar, abaixou imediatamente a porta da barbearia. Pegou um copo de água da bilha de barro e deu à filha.
— Não! Desculpa, seu pai, Lúcia. Esse sô eu quando cê tinha 3 mês.
— Como desculpá? O que o sinhô e minha mãe fizero comigo? A vida inteira, ela me contô que meu pai morreu afogado no riacho da ponte.
— Sim, eu afoguei nas banda da Fazenda do Matoso…
— E por que vivero essa vida de mentira?
— A sua mãe, filha…
— O que tem a minha mãe?
— Ela confundiu o meu irmão gêmeo, Tonho, comigo e achou que eu havia traído ela com a comadre Veridiana e…
— O que tem a fofoqueira da beata Veridiana com isso tudo?
— Não houve traição, mas a sua mãe nunca acreditô… Ficamo muitos ano sem conversá. Fizemo um trato aqui na cidade de nenhuma alma viva ia te contá história. Só eu ou Maria Elvira podia te dizê.
— Será mesmo, pa…
— Você ia me chamar de pai, Lúcia?
— Eu já nem sei mais…
— Por favor, Lúcia, eu peço perdão pela sua mãe, por mim…
— Bem que eu ficava por entendê qual era o motivo de tamanha afinidade que eu sempre tive pelo sinhô…
— Eu tinha medo de falá, filha.
— Quando iam me contá essa história? E a cidade inteira de bico fechado, Amâncio?
— Desculpa, filha. Desculpa a sua mãe também. Eu peço perdão por nós. Fomo covarde, minina! Fomo covarde, eu e sua mãe…
— Não sei, Amâncio… Preciso pensar…
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Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Uma redatora apaixonada pela escrita criativa, cultura de maneira geral, que ama escrever, contar histórias reais ou fictícias.