Aquele dia foi bastante atípico. Por volta das 5:30 h… mal o Sol havia saído no horizonte e a cachorrada de perto da avenida não parava de latir estranhamente, como se algo fora do normal estivesse acontecendo.
Melina saiu de carro para o trabalho. Era sempre o mesmo trajeto. Quando chegou à avenida, viu uma cadela que parecia ser conhecida e estava rodeada por ao menos cinco machos, grandes e pequenos. Sem poder ajudá-la, a mulher continuou o seu caminho para o trabalho, mas não perdia a imagem da cadela. “Só pode ser a Branquinha do Ricardo, morador de rua”, pensou.
De fato, era! Bastante dócil e de médio para grande porte, ela era malhada em branco com marrom-claro. Parecia ser cruzamento de cão SRD com Pitbull. A fêmea estava no cio e, diferente do normal, fora da guia. O homem dormia do outro lado da avenida e não percebeu a “cena”.
“Será que alguém, sabendo do cio da cadela, resolveu soltá-la de propósito para cruzamento?”. Vai entender a cabeça do ser humano”, raciocinava a moça.
Não é nada fácil a vida das pessoas que não têm onde morar, bem como dos animais que ficam nas ruas. A fome e tantas outras dificuldades “imperam” na vida dos sem-teto.
Ricardo ganhava alguns trocados, passando os dias colhendo e vendendo recicláveis ou recebendo ajuda das pessoas da região. “Branquinha” não era só uma “amiga e companheira”. Ele a chamava de “filha”. Vez por outra, era possível vê-la deitada dentro do carrinho de compras de supermercado que ele utilizava para colocar os seus poucos pertences. Ter um carrinho de compras tem sido algo muito comum para moradores de rua nas grandes cidades.
Ao fim daquele mesmo dia do encontro dos cães na avenida, no retorno para a casa, Melina percebeu que um dos animais que estavam rodeando a cadela permaneceu por perto do morador de rua, numa provável tentativa de acompanhamento da antiga dupla. Talvez tenha sido este a ganhar o território.
Sempre que podia, Melina dava uma ajuda com recicláveis, comida ou uma pequena quantia em dinheiro para a sobrevivência básica do rapaz. Alguns dias após o ocorrido, Ricardo tocou a campainha da casa da moça. Já não eram apenas dois cães, mas três. Ele iniciou a conversa:
— Vocês têm cachorro, Milena?
— Não, por quê?
— É que a Branquinha está precisando comer, né, filha? — Disse Ricardo, olhando com ternura para a cadela. — Às vezes, come até capim de tanta fome.
O cão, mais ou menos do mesmo tamanho, bastante preto, estava de “prontidão” na esquina da rua.
Milena deu um dinheiro para ajudar na compra de ração, esquentou uma janta no micro-ondas, entregou uma sacola com recicláveis a Ricardo:
— Eu até vi os outros cachorros dando em cima dela, mas eu não podia fazer nada. Fiquei com medo de que me mordessem. Será que ela engravidou?
— Acho que não, moça!
— Ele foi o que ficou por perto? — Disse ela, apontando para o cão preto.
— Agora esse aí está na cola da gente e os outros se mandaram.
— Se você conseguisse uma castração para ela…
— A dona do salão ali na avenida disse que vai tentar me ajudar. — E continuou, dirigindo-se ao cão: — Pretinho, vamo embora!
— Espero muito que ela não esteja grávida, do fundo do meu coração.
— Acho que não, mas parece que foi maldade. Alguém deve ter soltado a guia de propósito. Ela não anda fora da guia, sabe? Obrigado pela ajuda. Vou vender esses recicláveis aqui para ganhar mais uns trocados. Ah… qualquer coisa que precisar, eu estou aqui para somar, viu? Cortar um mato de sarjeta, qualquer coisa. Vocês me ajudam tanto…
— É só uma ajuda, Ricardo. Se nós pudéssemos fazer mais, faríamos, pode ter certeza. Se eu souber de um serviço, eu te falo. Deus te abençoe e que esses dois aí possam tomar juízo. — Disse Milena sorrindo para Ricardo e o “casal de cães”.
Todas as vezes que ele ia até a casa de Milena, o pai dela, Geraldo, observava o comportamento do cão pela janela. Um dia, quando a filha entrou, ele perguntou:
— Esse é o genro?
Milena riu alto e respondeu:
— É ele, o “Pretinho”.
Algumas semanas se passaram e o rapaz voltou à casa da moça. Chovia pouco, mas estava frio. Milena preparou um lanche para o rapaz, pegou uns recicláveis e teve uma surpresa: o carrinho estava tampado com uma sombrinha colorida e estava cheio. Pretinho, por perto, demonstrava ser um “cão de guarda”.
— E aí? Nasceu?
— Sim, Milena. Veja aqui. São sete cachorrinhos.
Milena ficou admirada, tão pequenos e bonitinhos. Os que ela conseguiu ver foram dois parecidos com a mãe, dois com o pai, um marrom.
— Ricardo, meu Deus! — Disse, passando a mão no rosto com aflição.
— Há uma semana, acordei todo molhado e percebi que ela estava parindo os filhotes. Eu tive que ajudar por mais de uma hora. Naquele momento, um pombo se aproximou dela e… Ela virou imediatamente para o lado e abocanhou a cabeça dele. Ali, eu vi que ela tomou raiva de pombos.
— Protegendo seus filhos, claro. Nem imagino o aperto que você passou. Graças a Deus, estão bem, né?
— Sim, ela é uma boa mãe. Muito carinhosa, né, filha? — Disse o rapaz, fazendo um carinho em na cadela.
— Deus te abençoe, viu, Branquinha? Você é uma boa mãe, não é? Vai dar tudo certo com você e seus filhotinhos. — Falou Milena, olhando a cadela com ternura.
— E você, “moço”, tenha juízo, viu? Dá um jeito de ficar quieto e não “mexer” com outra cachorra, não.
Os dois ainda conversaram por um tempo sobre a castração e a doação dos filhotes. Ele disse que, se pudesse ficar com todos, faria isso, mas era inviável. Já havia conseguido doação para dois filhotes e os outros cinco já estavam encaminhados. Era preciso esperar apenas o desmame. A castração do casal também teria ajuda de moradores do bairro, afinal ele não tinha como custear o tratamento.
Vez por outra, Milena encontrava o rapaz por perto de casa. Ele continuava a vida dele cuidando de uma família de nove “quatro patas” até que os filhotes pudessem ser adotados por outras pessoas. Pretinho foi “adotado de vez” por Ricardo. Normalmente, não é possível ver gatos acompanhando moradores de rua, mas os cães são verdadeiros companheiros em qualquer circunstância.
Certo dia, o rapaz voltou à casa de Milena. Branquinha já não estava mais no carrinho. Andava presa na guia. O macho, como sempre, ia seguindo pai e “filha”. Milena preparou um lanche, mais um saco de recicláveis e entregou ao rapaz. Por alguns minutos, eles conversaram:
— Tudo bem, Ricardo?
— Sim, Milena. Graças a Deus, vou levando esta vidinha aqui.
— Vejo que conseguiu doar os filhotinhos.
— Doei tudo. Foi uma briga danada nessa avenida. Cada hora um dizia: “Esse é meu”. O que é parecido com ela é meu”. “Aquele outro preto é meu!”.
— Que ótimo. Graças a Deus. Fico feliz por você.
— Foi difícil, mas deu certo. Muita gente ajudou com ração, outras pessoas estão ajudando para encaminhar a castração dos dois agora. Eu passei quatro semanas sem dormir à noite. Acordava assustado, vendo cachorro correndo na rua.
— Igual a uma criança, né? Você já teve filho?
— Sim, igualzinho.
— E vocês, Pretinho e Branquinha, tratem de ter juízo! — Disse Milena para os animais.
— Ele não desgruda mais de você, né, Ricardo? É um “territorialista”! E ela aceita que ele fique atrás de outras fêmeas?
— Não! É só ele sumir um pouco que ela já fica nervosa e começa a latir.
Milena arregalou os olhos:
— “Territorialista” também?
— “Casou”, Milena!
Ela soltou uma gargalhada e disse:
— Sabe como o meu pai chama o Pretinho? Deixa eu te contar!
— Como?
— “Genro”!
Ricardo deu uma boa risada olhando com carinho para a moça. Ainda sorrindo, ele agradeceu a Milena a ajuda daquele dia; juntou os seus pertences; chamou os dois pets e desceu pela rua escura a fim de vender os recicláveis no fim do dia:
— Muito obrigado! Deus abençoe vocês…
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Obs.: Esta é uma história real, mas os nomes do rapaz e de seus pets foram trocados a fim de preservar-lhes a identidade.
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Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Uma redatora apaixonada pela escrita criativa, cultura de maneira geral, que ama escrever, contar histórias reais ou fictícias.