CRÔNICA - As voltas que o mundo dá. Por Juliana Fernandes Gontijo.

— Não acredito! Será possível? Do outro lado do Atlântico, Clarice?

— Acho que você me confundiu com outra pessoa, senhora.

— Não está me reconhecendo?

— Adriana Lopes?!

— Sim, sou eu, Clarice, mas não me lembro de seu sobrenome!

— Oliveira! Meu Deus! Há 25 anos que trabalhamos na mesma empresa e viemos nos encontrar na Itália!

— O que faz aqui? Porque eu, meu marido e minhas filhas estamos de férias na casa do meu cunhado aqui em Roma e você?

— Vim a trabalho, participar de um Congresso de Administração Hospitalar.

— Você não mudou nada! Parece que o tempo parou a sua vida!

— Não foi tanto assim, mas tudo bem. Já superei…

— Por quê?

— Minha vida teve muita reviravolta que nem imagina.

— Duvido que tenha sido mais que a minha.

— Será que vamos competir como você gostava de fazer na fábrica, Adriana? Não me venha de novo!

— Não, claro que não! Isso não importa mais, de verdade. Foi há 20 anos. Eu me casei, separei e voltei para o meu esposo. Lembra do Fabiano?

— Da expedição?

— Ele mesmo.

— Sério? Mas vocês viviam brigando! Todo mundo sabia!

— Um não podia olhar na cara do outro. E aí deu no que deu.

— E como vocês se apaixonaram?

— Ah, desta história você não ficou sabendo.

— Verdade! Saí da empresa e procurei me afastar de lá.

— Não sei porquê, mas eu achava o cara insuportável.

— Cada um com seu jeito, Adriana!

— Sim, mas eu não aguentava aquele sotaque paraibano.

— E como isso mudou?

— Sinceramente? Não sei. Ele me disse que, do nada, começou a pensar em mim o dia todo. Essas coisas que todo homem safado fala.

— E aí?

— Um dia, ele me chamou para irmos ao cinema e depois a um restaurante lá perto da fábrica.

— Não acredito que você aceitou de cara. Sei bem que você adorava um roqueiro.

— Não achava a menor graça nele! E ele não gosta nem um pouco de rock, ele é fã de jazz. Pode com isso? Também ele não gostava de sair de casa.

— Como deu certo, então?

— Quando conversamos pela primeira vez, eu fiquei admirada, com o tanto que ele sabia da minha vida. Na verdade, tomei um susto!

— Difícil de acreditar, viu?

— Também achei na época. Namoramos por cerca de 1 ano e nos casamos. Tudo às mil maravilhas. Até que os meus amigos roqueiros começaram a frequentar muito a nossa casa. Isso começou a incomodar Fabiano e a mim também, mas eu não dava o braço a torcer. Uns gostavam de um baseado e começamos a ter problemas com a polícia. Eu jamais experimentei essas porcarias. Longe de mim!

— Meu Senhor!

— Eu até gostava do pessoal, mas eu não gostava daquelas atitudes, porém não sabia dizer “não”. Após 3 anos de casamento, nos separamos, porque ele quis. Só depois vi que não era essa vida que eu queria para mim também, mas o estrago já estava feito.

— Que chato, hein? E as meninas eram pequenas?

— Não tínhamos filhos! Ainda trabalhamos mais 10 anos na fábrica depois que você saiu. Estudamos na mesma turma de faculdade. Fizemos Ciências Contábeis, formamos juntos. Talvez isso tenha estragado tudo. Dentro desse tempo, nos casamos e separamos. Continuamos a trabalhar na empresa. Era muito estranho.

— Eu não aguentaria.

— O profissionalismo dele “ganhava” do meu, pode acreditar, Clarice. Era como se nada houvesse acontecido em casa. E cada um voltou para seu canto de origem. A casa de nossos pais.

— Parece história de novela.

— Nossos colegas falavam o mesmo. Não namoramos outras pessoas e, cinco anos depois, reatamos o casamento. Recomeçamos a nossa vida do zero; fomos para a terapia de casal e hoje somos bastant3e felizes. Nós conhecemos a bíblia, o que nos ajudou demais. Eu até que aprendi a gostar um pouco de jazz e ele, de rock. Não é engraçado? Temos duas filhas adolescentes: Karina, de 14 anos, e Kelly, de 12. A vida deu uma volta enorme, Clarice. Montamos uma empresa de assessoria em Contabilidade e vivemos bem, por honra e glória do Senhor. Agora, diga como foi sua vida nesse tempo todo? Porque ela foi muito generosa com você, foi sim! Continua linda, Clarice!

— De repente, a vida tenha sido mesmo e preciso até agradecer ainda mais… Eu saí da empresa para fazer um curso técnico de radiologia. Eu já gostava da área.

— Bem diferente do administrativo!

— Demais! Era o meu sonho fazer enfermagem.

— E por que não fez? Parece até que nos vimos no ano passado e nem éramos tão próximas assim, né? Quanto assunto! E a vida passou tão depressa.

— Adriana, você continua a mesma curiosa de sempre. Não mudou nada!

— Fabiano e as meninas não cansam de dizer isso, porque pergunto demais. É um defeito meu…

— Bem, terminei o curso de radiologia e fiz um concurso público para trabalhar naquele famoso hospital público de oncologia lá da cidade, lembra?

— Vejo que sua vida tomou outro rumo mesmo.

— Você não faz ideia do tanto. Isso foi uns 3 ou 4 anos depois que saí da fábrica.

— E você se casou? Fez enfermagem?

— Nenhuma das duas opções. Quando havia uns 5 anos que eu trabalhava no hospital, chegou um equipamento novo de mamografia e o médico chefe da equipe perguntou quais funcionárias gostariam de fazer mamografia para fins de teste da máquina. Eu, claro, me prontifiquei, só de curiosidade, porque eu estava longe da idade dos 40 anos na época para o controle anual. E não sentia problema algum!

— E aí?

— Deu ruim.

— Como assim?

— Descobri um câncer nas mamas e já estava um pouco avançado.

— Meu Deus! Até arrepiei agora!

— Eu desabei, Adriana. Entrei em depressão. O médico ficou com aquele sentimento de tristeza e alegria, pela boa compra, mas descobriu um câncer! Ao menos, descobriu a tempo de cura. O hospital bancou todo o tratamento e ele mesmo fez a cirurgia. Precisei retirar as duas mamas, ainda teve quimioterapia.

— Quando foi isso? Por honra e glória do Senhor, você melhorou, né?

— Foi há 10 anos. Deu uma complicação na cirurgia, por isso foi preciso retirar as mamas. Coloquei prótese. Hoje sou considerada curada, em nome do Senhor! Num dia dos muitos de minhas internações, uma obreira da igreja, me apresentou a Bíblia. Comecei a frequentar uma igreja perto de casa e o pastor me ajudou muito, meus amigos de lá também. Comecei a ter mais fé em Deus, pois não tinha antigamente. Jesus foi fundamental na minha vida.

— Viu como eu disse sobre a generosidade da vida? Você foi curada, Clarice. Nunca se esqueça disso.

— Quando olho para trás e vejo como a vida passou rápido, e eu fiquei livre de tudo isso em nome de Jesus! Eu quase não acredito.

— E você não se casou?

— Com o problema da doença, não quis saber de relacionamento. Resolvi apenas focar no meu problema e na cura e frequentava, 3 vezes por semana, os cultos da igreja, mesmo com dificuldades para andar. Com muitas dores, eu dava o meu testemunho. Eu me tornei obreira da igreja aconselhada por outra obreira a Matilde. Hoje, você me vê assim e diz que a vida foi generosa comigo, até que foi mesmo! Veja esta foto. Emagreci quase 20 quilos. Perdi o meu lindo cabelo…

— Nossa, Clarice. Sinto muito por você, mas agradeça a Jesus que te deu a cura. Ele te deu a cura em nome do Senhor!

— Sim, foram períodos bem difíceis, fiquei internada vários meses. Coloquei na minha cabeça: eu vou ter a cura! Deus vai me dar a cura! Eu saí da radiologia, fiz faculdade de Administração. E tive a cura real! Após os 5 anos para ter a resposta de que o câncer não voltou, eu passei a ter mais cuidado comigo. Não que eu não tivesse, mas era preciso atenção permanente. Eu só tenho 48 anos e bastante vida pela frente, não é verdade?

— Hoje, vendo você me contar tudo o que passou, percebo que preciso me cuidar também. Autoexame, ir ao médico, verificar sempre a saúde, né? Isso é importante.

— Sim, com certeza. A vida foi generosa, Adriana. Só eu não me dava conta disso. Obrigada por me fazer entender. Agora conta uma coisa? Ainda ficará muitos dias aqui em Roma? Na sexta, eu já volto para o Brasil.

— Nós também.

— Verdade?

— Voo 749 às 15 horas, saindo aqui de Roma para o Rio de Janeiro.

— Não!!! O mesmo voo que o meu? Não acredito!

— É porque tínhamos que nos reencontrar, Clarice. Quem sabe para eu pedir desculpas para você, porque eu sempre tive inveja do seu trabalho, do seu cargo na fábrica. Eu me arrependo tanto!

— Eu já imaginava, Adriana, por isso eu não procurei fazer amizade com você. Mas nunca me atingiu, pode ter certeza!

— Você me perdoa?

— Jesus já te perdoou. Fica tranquila. Eu já superei tudo. A doença me ajudou bem nisso.

— O que acha de nos encontrarmos amanhã? Fabiano vai gostar de te ver, ele sempre falou bem de você e eu morria de ciúmes. Que vergonha!

— Tudo bem! Já passou. Pega o número do meu celular. Se bobearmos nas coincidências, quem sabe estou perto da casa do seu cunhado?

— Estou na rua de baixo, na frente do casarão amarelo, ao lado do hotel de fachada vermelha.

— Não acredito! Estou nesse hotel! Suíte 1015.

— Meu Senhor Jesus! Sério?! Eu chamo você amanhã para um almoço, certo? Por volta das 13 horas.

— Fico esperando. A gente precisa conversar mais. E quem sabe poderemos ser amigas? Se você quiser, obviamente!

— Vamos fazer assim? Começamos do zero, certo? Do mesmo jeito que eu e Fabiano fizemos!

As duas ex-colegas de trabalho ficaram emocionadas ao se abraçarem pela primeira vez.

Imagem: djedj por Pixabay – Rua Panteão / Roma.

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Uma redatora apaixonada pela escrita criativa, cultura de maneira geral, que ama escrever, contar histórias reais ou fictícias.