A família Pinheiro morava em um pequeno sítio à beira de uma estrada vicinal no interior de Minas Gerais. José e Maria tinham dois filhos, Renato e Ricardo ainda crianças. O casal vivia do comércio de frutas e hortaliças. E já estava acostumado com os problemas de furtos durante a madrugada no quintal de casa. A estrada era famosa por ladrões saltando o muro dos quintais no meio da noite. Zé tentava se defender como podia. Assim que anoitecia, ele e a mulher não deixavam os filhos brincarem no fundo do quintal e quase nem abriam porta de casa durante a noite.
Eles tinham um cachorro “vira-lata”, um apelido dado aos animais sem raça definida nos tempos de antigamente. Ele foi encontrado por Zé no asfalto, quando deveria ter um mês e pouco de vida. O filhote estava faminto, tremendo de frio e bastante sujo.
Mesmo sabendo que Maria seria contra a ideia, o marido levou o cãozinho para a casa:
— Não adianta resmungar. Tive dó do cachorro, muié! Assim é bom que, depois de grande, vai ajudar a protegê nossa casa.
Quando os meninos viram o animal, pularam de alegria. Naquele tempo, quem se preocupava se um bicho encontrado no meio da estrada estivesse doente? Era só dar um banho com o sabão que tinha na pia, enxugá-lo e… estava “novinho em folha”.
Ricardo tratou logo de dar um nome para ele:
— Pai, vamo chamá o cachorro de “Beleléu”.
— Fio, isso lá é nome de bicho?
— É sim! Renato também gostou.
— É nome bão, pai. — Confirmou o outro filho, enquanto corria atrás do animal.
Maria, por sua vez, estava preocupada por “ter” mais uma boca para cuidar. Ele comia feito um leão. Na hora de preparar a janta, percebeu a encrenca em que a família estava se metendo. Enquanto foi ao quintal colher umas folhas de couve, o cachorro roubou o pequeno pedaço de toucinho que a família tinha para o jantar.
Os dias iam passando e qualquer cheiro de carne que sentia, ele já estava lá tentando “roubar” sua comida predileta. Se a comida sumia, já podiam saber: a carne “tinha ido pro Beleléu”. Eles viam apenas o cão lambendo “os beiços”.
Para intimidar os roubos, Zé arrumou um pedaço de galho mais grosso de pé de manga e deu o nome de “porrete”. O intuito não era bater em Beleléu, mas amedrontá-lo quando tentasse roubar comida. O cão, sempre que via o galho de árvore, abaixava as orelhas, enfiava o rabo entre as pernas e saía de “fininho”. Ricardo e Renato riam da cara de Beleléu, mas percebiam que ele respeitava o pai deles, pois, por um tempo, deixava de aprontar.
O animal cresceu e continuava carinhoso com a família, mas se alguém estranho se aproximasse do portão de casa, o cão se transformava. Parecia um monstro. A qualquer sinal que julgasse ser perigo, Beleléu avançava. Isso estava se tornando um problema para a vizinhança e a freguesia na barraca de verduras e frutas à beira da estrada. Muitas vezes, o cão já mostrava os dentes para alguém que mal se aproximava para fazer compras ou tentava brincar com ele.
José dizia sempre:
— Cuidado, Beleléu é nervoso.
O homem começou a usar o porrete também para fazê-lo entender que, nem sempre, todas as pessoas que se aproximavam do portão poderiam ser ameaça para a família Pinheiro.
Com essa agressividade do animal, os pequenos furtos no quintal durante a madrugada diminuíram.
No entanto, vez por outra, após alguns latidos raivosos, era possível ver um pedaço de roupa rasgada na cerca ou uma botina desconhecida no quintal. Na certa, um ladrão de estrada tentara saltar o muro e Beleléu não perdia tempo.
Maria e José perderam a conta de quantas vezes acordavam assustados de madrugada com batidas na porta dos fundos da casa.
Zé tomava coragem e ia, nas pontas dos pés, para olhar na fresta da janela de madeira da cozinha. Nem acendia o liquinho a gás, porque assim dificultaria a visão de quem pudesse estar no quintal.
Numa sexta-feira Santa, naqueles tempos em que muitas pessoas não faziam as tarefas em casa pelo respeito ao Cristo crucificado, quando Maria abriu a porta da cozinha pela manhã, se deparou com um lençol rasgado e todo sujo de sangue.
— Meu Jesus, o que é isso? Corre aqui no quintal, Zé! — Gritou ela, desesperada.
— Será que um ladrão tentou entrar em casa de novo? Ah, se Beleléu falasse! — Disse o marido. — Anda, esconde isso dos meninos, muié!
Ele foi à procura de Beleléu com o porrete. O cão estava muito agitado e com a boca manchada de sangue.
“Sim, alguém tentou invadi o meu quintal”. — Pensou.
Ao ver o pedaço de pau, o animal foi, aos poucos, amansando pelo medo de Zé. Ele percebeu a situação de Beleléu e largou a “arma”. Caminhou mais um pouco pelo terreiro e percebeu que o canteiro de cebolinhas foi pisoteado por alguém.
— Precisamo reforçar essas porta e o portão, muié! Nem com o Beleléu nervoso desse jeito, a “coisa” num tá boa.
— Cê sabe que eu nunca quis um cachorro em casa, mas se num fosse ele, nós podia tá tudo morto agora.
— Esse ladrão nunca mais entra aqui. Esse não! O Beleléu deve ter dado uma surra nele! Bem feito! — Disse José, dando uma risada.
— Anda, homi! Faz logo uma fogueira e queima esse lençol ou vamo ter pobrema com a polícia!
— Eu vou é dá um jeito de comprá uma garrucha pra dá uns tiros de sal grosso e assustá esses ladrão!
— Faz isso não, Zé. Assim vamo acabá tendo pobrema.
— Num dá mais, muié. Ou então vamo ter que mudá daqui. Corre lá, Maria, passa água nesse cachorro!
Ela deu um banho em Beleléu para os filhos não tomarem conhecimento do problema no quintal. Juntou restos de folhas secas, gravetos ao lençol sujo e ateou fogo. Os filhos, ao acordarem, ficaram intrigados com o cheiro forte e estranho nos fundos do sítio.
Zé deu uma desculpa dizendo que eram folhas de couve podre e mangas passadas que catou para fazer a fogueira do lixo.
Alguns meses depois, o casal voltou a acordar de madrugada com um “toc-toc-toc” na porta da cozinha. Beleléu dormia no quintal. E, com estes barulhos, o cão não dava a menor resposta. Zé olhava pela fresta da janela da cozinha e não encontrava algo que pudesse demonstrar uma presença estranha no terreiro.
Era sempre o mesmo barulho: “toc-toc-toc”.
Ao fim de uma semana, Zé já havia comprado a garrucha. Deixou-a preparada com várias pedras de sal no gatilho. Durante o dia, untou as juntas da porta da frente com querosene e logo ela parou de ranger. Era preciso silêncio para abrir a porta.
— Maria, se eu ouvi mais um “toc-toc-toc” de madrugada, eu espanto esse disgraçado com tiro de sal grosso no traseiro ou mato ele no porrete.
— Carma, Zé! Pode ser perigoso pra nóis!
— E o Beleléu que não faz nada! A hora que eu preciso desse cachorro, ele dorme como um santo!
— Estou rezando o “Credo”, homi. Vai dá certo!
— Sei não, muié!
De madrugada, Maria e José acordaram novamente com o “toc-toc-toc”.
— Fica quieta aí, que eu vou lá vê que diabo é isso lá fora. Ladrão não bate na porta.
— Cuidado, Zé! Não vai arrumá encrenca! Pode sê alma d’outro mundo!
— Já falei, muié, isso não existe!
O marido saiu às escondidas, apenas com uma pequena luz de lamparina e a garrucha na mão. Já no quintal, ainda escutava o barulho alto na porta da cozinha.
“Mas será possível? Que barulho é esse?!” — Pensava o pai de Renato e Ricardo.
Ao chegar na quina da parede da cozinha, apenas colocou a cara para fora e teve uma inesperada surpresa. Voltou rapidamente para dentro de casa e chamou Maria:
— Reza pra São Francisco de Assis mostrá pra nóis o que vi lá fora.
— O quê foi, Zé? Fala, homi de Deus!
— Reza, porque ocê tem que vê com seus próprio zóio que a terra há de comer.
Maria e José foram até o quintal:
Fizeram o mesmo trajeto que ele havia feito minutos antes. Quando chegaram à quina da parede, o marido sussurrou:
— Espia só, muié, que está nos assustando esses dia tudo!
— Não pode ser, Zé! Os menino não vão acredita!
O marido passou a mão no porrete e foi para cima de Beleléu gritando:
— Ah, se eu te pego, Beleléu! Cê tá cheio de pulga e carrapato. Onde arrumou essas porqueira? Nas suas caçada de madrugada, cachorro disgraçado? Fica aí coçando a cabeça cheia de pulga e fazendo “toc-toc-toc” com essa pata batendo na porta! E nós achano que era ladrão pra passa medo ne nóis!
O cão, assustado com o porrete, saiu de fininho para o fundo do quintal, como era de costume. Maria e Zé, mesmo com aquele frio da madrugada, ficaram sentados no chão rindo por alguns minutos das batidas “pelas pulgas” na porta da cozinha. José ainda tentou chamar o cão, mas ele seguiu sozinho pelo fundo do quintal, com o rabo entre as pernas, e ficou por lá, quieto, até o sol raiar.
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Imagem: Sandeep Handa por Pixabay.
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Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Uma redatora apaixonada pela escrita criativa, cultura de maneira geral, que ama escrever, contar histórias reais ou fictícias.