Critérios de noticiabilidade? Emplacar matéria? Os jornalistas como comunidades interpretativas. Por Lilian Sanches.

Originário dos estudos literários, o termo “comunidade interpretativa” foi cunhado por Stanley Fish (1980) para explicar a uniformidade na interpretação textual em um determinado grupo que compartilhava o mesmo espaço geográfico, função social, tradição cultural e/ou convicções. Paralelamente, o conceito foi dilatado em referência a noção de comunidades de memória de Robert Bellah (1985), no qual os grupos seriam unificados pela interpretação compartilhada da realidade por meio do tempo, o que se daria pela repetição das narrativas dominantes.

Estendendo a teoria de Fish (1980) para o campo do jornalismo, Barbara Zelizer (1992) argumenta que os jornalistas constituem uma comunidade interpretativa devido às narrativas compartilhadas e reiteradas por seus membros. A abordagem da autora, estruturada ao redor da noção de autoridade, enfatiza o âmbito cultural do jornalismo como fenômeno em seu papel social, criando uma alternativa às análises anteriores focadas no caráter sociológico da profissão. Zelizer também defende que os acontecimentos são coletivamente interpretados pelos jornalistas, que usam o discurso não somente para conferir sentido à prática profissional, como também a fim de assimilar “elementos dessa prática negligenciados pelas interpretações formalizadas da profissão” (1992). Torna-se necessário observar, então, não apenas como os jornalistas atribuíram a si mesmos o poder de interpretação da realidade bem como deve ser analisado o esquema narrativo utilizado, que pode se originar tanto da coesão entre os jornalistas quanto do reforço das mensagens ou a compreensão das audiências.

A professora estadunidense busca diferenciar os jornalistas da atividade profissional ao enfatizar a manifestação de uma cultura comum às formas de apreciação do presente que se desenrola ao longo do processo noticioso. As delimitações do jornalismo feitas com ferramentas emprestadas da sociologia das profissões, delineadas a partir de ocupações liberais clássicas, como o direito e a medicina, são rejeitadas por Zelizer em detrimento do processo de atuação jornalística em relação aos demais atores sociais. Paralelamente, é nos ambientes das redações que a cultura do jornalismo é construída por meio de rituais, narrativas, valores e parâmetros compartilhados que, por fim, são capazes de gerar conhecimento jornalístico técnico, classificado por Ericson, Baraneck e Chan (1989) como saberes de reconhecimento – como situar jornalisticamente um evento em um espaço temporal e geográfico –, saberes de procedimento – como abordar um assunto, quais fontes consultar, métodos de entrevista –, e saberes de narração – como embasar e apresentar fatos corretamente a fim de conferir credibilidade.

Zelizer contrapõe em sua teoria o fato de que estudos sobre o jornalismo como campo profissional contribuíram para a melhor compreensão teórica e prática das atividades, além de permitir que o jornalista se considere um profissional que desempenha uma tarefa comum aos demais colegas, gerando a sensação de partilha e “uma aura de autoridade baseada em uma atitude específica para efetuar tal tipo de trabalho” (ZELIZER, 1992). A partir dessas ideias, o conceito de jornalistas como comunidades interpretativas explora a forma como os profissionais se legitimam como intérpretes autorizados da realidade, considerando que a cultura jornalística é concebida por meio de redes informais de diálogo e troca. Retomada no Brasil por Nelson Traquina (2005), a teoria também considera que, como agente social, o jornalismo e sua cultura não são restritos ao grupo específico de profissionais responsáveis pela produção noticiosa, devendo ser também compartilhada e reiterada por outros grupos da sociedade para que possa ser validada e perdurar. Para Zelilzer, fundamentalmente, as comunidades interpretativas devem ser caracterizadas a partir de uma abordagem que considere essencial a circulação difusa dos parâmetros interpretativos que orientam a leitura da realidade e formação narrativa, retirando a ênfase analítica e positivista das regras deontológicas e processos educacionais padronizados. Assim, o discurso homogêneo constituído pela e para a comunidade interpretativa acaba estabelecendo padrões de autoridade e memória provenientes das boas práticas profissionais, permitindo a consolidação identitária e, no caso dos jornalistas, principalmente o estabelecimento do que seria o “modo de ser” jornalístico.

Embalado por esse viés teórico, ao fazer suas considerações, Traquina (2005) opta por utilizar o termo tribo como sinônimo de comunidade, uma inequívoca remissão ao postulado de Michel Maffesoli (1998). O autor brasileiro defende ainda a existência de uma transnacionalidade que permearia a comunidade jornalística, se apoiando na hipótese de que a análise da cobertura noticiosa em países distintos revela mais semelhanças significativas do que diferenças. Justamente a profissionalização proporcionaria um conjunto de referências comuns a partir das quais os jornalistas interpretariam a realidade do mundo. De modo mais generalista, Pierre Bourdieu (1997) aborda este fenômeno sugerindo que os jornalistas “usam óculos especiais a partir dos quais vêem certas coisas e não outras; e vêem de certa maneira as coisas que vêem” (p. 25).

Neste sentido, os jornalistas constroem significados histórica e socialmente formulados. Em trabalhos posteriores, Zelizer (2008) teoriza que a consolidação do processo jornalístico relegou os historiadores, distantes do grande público, para um papel secundário na confecção do relato histórico. De acordo com a autora, esse fenômeno se deve à complexidade da contextualização, narrativa e interpretação histórica em contraste com o discurso emocional veiculado pela mídia acerca de eventos passados.

Considerando os meios de comunicação como importantes agentes de socialização, Kitch (2008) defende que as referências ao passado no debate público, potencializadas pela mídia, constituem a principal forma de aprendizagem da história para grande parte da população. Os relatos comunicativos possuem protagonismo frente à narração histórica, segundo Bruno Reis (2011), devido à preferência do público por mensagens e visões simplificadas, que, por sua vez, geram memórias midiáticas que levam a representações distintas da história. A dinâmica proveniente dessa nova lógica confere ao jornalismo a possibilidade de construir uma “historicidade mediática” (THOMPSON, 1998), fazendo com que os veículos de comunicação atuem como órgãos de historização, que participam ativamente para a formação da memória social.

Quer saber mais?

BOURDIEU, P. O mercado de bens simbólicos. In A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva,1987. P. 99-181.

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

TRAQUINA, N. Teorias do jornalismo. Volume II: a tribo jornalística – uma comunidade interpretativa transnacional. Florianópolis: Insular, 2005.

ZELIZER, B. Covering the Body: the Kennedy Assassination, the Media, and the Shaping of Collective Memory. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1992.

ZELIZER, B. Os jornalistas como comunidade interpretativa. Traquina, N. (org.) Jornalismo 2000. Revista de Comunicação e Linguagens. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, n. 27, fevereiro de 2000, p. 50-65.

ZELIZER, B. Why memory’s work on journalism does not reflect journalism’s work on memory. Memory Studies, 1 (1), p. 79-87. 2008.

Lilian Sanches é jornalista, mestre em Comunicação Social e doutoranda no Programa de Psicologia Social e do Trabalho da Universidade de São Paulo.

E-mail: liliansanches@usp.br