COMUNICAÇÃO ACESSÍVEL E SEM FRONTEIRAS - Paulo Freire, Dona Hermínia e a liberdade de expressão no Brasil atual. Por Bruna Ramos da Fonte.

O veto à liberdade de expressão é uma característica fundamental dos governos autoritários, onde há um controle absoluto sobre a difusão da informação e sobre a expressão individual ou coletiva no contexto daquela sociedade. Indivíduos alienados não conhecem seus direitos nem seus deveres e, por isso, não questionam e não reivindicam, alimentando e possibilitando a continuidade daquilo que Paulo Freire – de quem neste ano celebramos o centenário de nascimento – chamou de “ciclo da opressão”. Por outro lado, a liberdade de expressão e o acesso à informação – através da educação – cria pensadores e críticos capazes de efetuar verdadeiras mudanças e contribuir para a transformação do mundo em que vivem.

Paulo Freire um dia sonhou com a alfabetização de todos como um passo fundamental na construção de uma realidade mais justa e melhor. Criou uma metodologia capaz de alfabetizar um adulto em apenas quarenta dias e o sucesso do seu trabalho fez com que fosse convidado pelo então presidente João Goulart para integrar o Ministério da Educação, onde criou o Plano Nacional de Alfabetização – responsável por alfabetizar e modificar então a vida de milhares de brasileiras e brasileiros. Trazendo Freire para o seu governo, Goulart buscava alfabetizar o maior número possível de pessoas a fim de garantir um sufrágio realmente universal em solo brasileiro, pois naquela época, mais da metade da população era iletrada e, de acordo com a legislação vigente, analfabetos não tinham direito ao voto. Legislação esta que vigorava desde 1881, quando da aprovação da Lei Saraiva – projeto de lei redigido pelo escritor, advogado e então deputado baiano Ruy Barbosa, que tinha a explícita intenção de vetar os direitos políticos de escravos e cidadãos pertencentes às camadas mais pobres da população, restringindo a participação política aos membros das elites brasileiras.

Enquanto isso, como todo aquele que milita em favor da educação e da difusão da informação para todos é rotulado como subversivo e tratado como uma ameaça ao governo autoritário, no mesmo instante em que o presidente foi deposto e os militares assumiram o comando do país, Freire passou a ser questionado, perseguido e interrogado. Não demorou para que fosse preso e, ao ser libertado – após setenta dias de encarceramento – deixou o país com a família para se exilar no exterior e, se a intenção do governo era impedir o desenvolvimento do seu trabalho, foi justamente o seu período no exílio o que possibilitou a ampla difusão do seu pensamento e da sua metodologia em escala global, garantindo a consagração definitiva do seu trabalho nos quatro cantos do mundo. Passados cem anos do seu nascimento, Paulo Freire segue sendo um dos mais respeitados educadores de todos os tempos e o terceiro teórico mais citado em trabalhos acadêmicos no mundo inteiro.

Com o final da ditadura militar em 1985 e com a promulgação da Constituição Federal três anos depois, as possibilidades de participação e representação das mais diversas camadas da sociedade civil na vida política do país passaram por um grande processo de mudança. Após a aprovação de uma emenda à Constituição vigente, no mesmo ano de 1985, finalmente foi concedido o direito de voto aos iletrados após mais de cem anos de veto. Ao mesmo tempo, muitos daqueles pensadores que haviam se exilado puderam retornar ao país e, tendo seus direitos novamente assegurados, construíram os alicerces do que seria o nosso Brasil contemporâneo: um lugar que, sem dúvida alguma, ainda tem muito a evoluir para se tornar o país com o qual sonhamos, mas que vive hoje uma realidade completamente distante e distinta daquela vivida durante os Anos de Chumbo. Principalmente porque reconquistamos a nossa liberdade de expressão após tantos anos de censura e repressão; com isso, um novo tempo se iniciou repleto de possibilidades, mas também de dúvidas, incertezas e desafios.

Neste novo cenário – mais livre e aberto ao debate – emergiram lideranças, coletivos e iniciativas que, com o passar do tempo, garantiram que mulheres, negros, indígenas e a população LGBTQ+ começassem a ocupar setores da sociedade onde até então as minorias não tinham nenhuma aceitação ou representatividade. É claro que essa presença ainda ocorre de maneira tímida e não chega nem perto de onde precisa chegar, mas acredito que estamos trilhando um caminho muito bem pavimentado que nos levará a vivenciar uma realidade mais justa e igualitária, onde cada um terá o direito de exercer e expressar a sua individualidade na construção de uma sociedade tão livre quanto diversa.

Apesar de ser um direito fundamental do ser humano – garantido pela Declaração dos Direitos Universais da ONU, por diversos tratados internacionais e, também pela nossa Constituição Federal – nem todos exercem o seu direito à liberdade de expressão, seja por medo, insegurança, costume ou até mesmo por falta de informação. Para que tenhamos o que expressar, é preciso que nos dediquemos a pensar, questionar e, principalmente, que estejamos sempre dispostos a duvidar das nossas certezas a fim de revisar e atualizar a compreensão que temos sobre o mundo que nos cerca. É preciso criar espaço para a discussão e para o debate e é preciso mudar essa cultura de que “política, futebol e religião são assuntos que não devem ser discutidos” pelo simples fato de não termos maturidade suficiente para ouvir opiniões divergentes das nossas; é a partir do contato com diferentes histórias e visões que somos desafiados a olhar para novas realidades, possibilitando assim a ampliação dos nossos horizontes e o nosso crescimento enquanto seres humanos.

Ao mesmo tempo em que muitos começam a despertar para a necessidade de sermos todos ativistas, representantes e militantes das nossas próprias causas – isto porque a nossa atuação impactará os grupos que se identificam com as nossas lutas e histórias – se torna cada vez mais urgente que aqueles que têm a capacidade de comunicar e inspirar um grande número de pessoas através do seu trabalho, utilizem esse espaço sagrado para exercerem ao máximo a sua liberdade de expressão. Não é preciso esperar que o tempo passe e que a história se encarregue de reconhecer o valor daqueles que hoje utilizam a sua voz e a sua influência para efetuar verdadeiras mudanças, como também não é preciso esperar nem mais um minuto para reconhecermos a importância – nesse contexto de transformação social – do ator Paulo Gustavo que exerceu publicamente – com honestidade e propriedade – o seu direito à liberdade de expressar seus pensamentos, ações e opções.

Se a Constituição Federal nos diz que “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (Artigo 5o., Inciso IV), é certo também que frequentemente optamos por transmitir e manifestar nossos pensamentos de forma indireta, através dos personagens que criamos ou representamos, para não termos que assinar o nosso nome embaixo ao falar em primeira pessoa sobre um determinado assunto, correndo o risco de arcar com as consequências que isto pode acarretar. Paulo Gustavo poderia ter restringido sua atuação aos palcos e às telas através das falas de Dona Hermínia – sem que para isso fosse necessário revelar o aspecto autobiográfico desta personagem e do enredo dos seus roteiros –, mas escolheu viver de forma transparente, fazendo com que carreira e vida pessoal se misturassem e se tornassem extensão uma da outra.

Através de Dona Hermínia, entrou na casa do brasileiro e com ele sentou-se no sofá para bater um papo e tomar um cafezinho, convidando-o a repensar seus modelos de família e a refletir sobre assuntos sensivelmente humanos como dúvidas e escolhas, expectativas e frustrações, modelos e papeis pré-determinados, filhos e relacionamento, vida e morte. No campo pessoal, não teve medo de compartilhar nas entrevistas, declarações ou nas redes sociais as suas vivências e opiniões – ainda que isso o expusesse frequentemente à crítica daqueles que não estão abertos a compreender aquilo que desconhecem. Exerceu explicitamente o seu direito de amar e ser amado, de oficializar a sua união com Thales, de permitir que esse amor frutificasse e trouxesse ao mundo Gael e Romeu – fazendo de Dona Déa, sua musa inspiradora e companheira de vida, uma grande avó. Tanto na sua vida pessoal quanto profissional, a cada passo, Paulo inspirou um número incontável de pessoas através das suas falas e ações. Quantas famílias se formaram – ou se formarão – a partir da sua inspiração?

Com toda a sua autenticidade, Paulo Gustavo tocou milhares de corações ao transmitir a sua mensagem de forma honesta e verdadeira, fazendo com que cada um olhasse para dentro de si mesmo em busca de acolher e aceitar os seus aspectos mais humanos e sensíveis. Ele nos convidou a reconhecer e assumir a melhor e mais verdadeira versão de nós mesmos – convertendo em qualidades aquelas características que até então tínhamos como defeitos – e nos encorajou a ocupar os espaços que são nossos por direito – independentemente de origem, classe social, raça ou gênero. Ele nos inspirou a transformar a vergonha e o medo de sermos nós mesmos em força e disposição para nos permitirmos viver o que há de melhor dentro da nossa alma.

Chegado o final dessa vida breve e estupidamente interrompida, Paulo Gustavo se vai deixando um legado que é fácil de ser reconhecido, pois representa a história de alguém que conseguiu verdadeiramente transpor montanhas através da sua humanidade e do seu bom-humor. Ele trouxe questões complexas para o debate de forma simples e acessível e, com isso, se tornou naturalmente um grande porta-voz da igualdade de direitos, da diversidade, dos direitos humanos e, principalmente, um porta-voz do direito de vivenciar e expressar a beleza do amor nas suas mais infinitas possibilidades. Ao viver de acordo com a sua verdade – expressando e compartilhando a sua história de forma sempre honesta e transparente –, plantou a semente da esperança no coração de quem com ele se identificou e se deixou inspirar pelos seus passos. E essa inspiração é a maior herança que Paulo Gustavo deixa nesse mundo não só para Gael e Romeu, mas para todos nós – que hoje inevitavelmente nos sentimos órfãos sem a presença de Dona Hermínia.

Bruna Ramos da Fonte é biógrafa, escritora, fotógrafa ensaísta, professora e palestrante. Especialista em Leitura e Produção Textual com Aperfeiçoamento em Psicanálise Clínica, é criadora da sua própria metodologia no campo da Escrita Terapêutica. É autora de diversos títulos, incluindo “Escrita Terapêutica: um caminho para a cura interior” (Letramento, 2021) e as biografias de Sidney Magal e Roberto Menescal. Visite: www.brfonte.com