COMUNICAÇÃO ACESSÍVEL E SEM FRONTEIRAS - Não podemos esquecer que há 45 anos Tenório sumia na noite. Por Bruna Ramos da Fonte.

Era apenas mais uma tarde gelada de inverno em Buenos Aires quando saí do apartamento da grande Mercedes Sosa, onde passara as últimas horas conversando com o amigo Fabián – filho já falecido de La Negra e do compositor Oscar Matus – que, naquele momento, estava me ajudando com a pesquisa para um projeto sobre a canção de protesto latino-americana. Como ainda faltavam algumas horas até o horário da peça que veria naquela noite, caminhei sem pressa até a Avenida Corrientes, parei na Cafetería La Giralda para tomar um submarino e vi o entardecer chegar caminhando entre uma esquina e outra. Até que, para minha surpresa, numa dessas esquinas me deparei pela primeira vez com a fachada do Hotel Normandie – do qual tanto ouvira falar nas minhas pesquisas.

Logo abaixo do nome do hotel havia uma placa que, apesar de saber o que dizia, li com lágrimas nos olhos: “Francisco Tenório Cerqueira Junior, Tenorinho: aqui se hospedou em sua última visita a Buenos Aires este brilhante brasileiro – músico de Toquinho e Vinicius [de Moraes] – vítima da ditadura militar [argentina]”.

Pode ser que você nunca tenha ouvido falar nesse que tinha tudo para se consagrar como um dos maiores nomes da música brasileira – caso tivesse vivido o suficiente para isso, é claro. Tenório estava em Buenos Aires para acompanhar Vinicius e Toquinho em uma turnê quando, na madrugada do dia 18 de março de 1976, saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou. Nos dias que se seguiram, houve uma grande mobilização em busca do pianista, sendo o seu desaparecimento divulgado pela imprensa enquanto Vinicius, Toquinho e alguns brasileiros exilados na cidade – entre eles o poeta Ferreira Gullar – buscavam em vão notícias e alguma intervenção junto à Justiça Argentina e à Embaixada do Brasil em Buenos Aires – que naquele momento já estava se convertendo em uma “filial” portenha da Operação Condor. No dia 24 – seis dias após o seu desaparecimento – aconteceria o golpe de estado que deporia Isabelita Perón, dando início ao período que ficaria conhecido como “última ditadura argentina” (1976-1983). No final daquele mesmo mês, a morte mal explicada do brasileiro foi informada à Embaixada e, a partir de então, Tenório seria para sempre lembrado como uma das primeiras vítimas desse período obscuro da história.

A morte do pianista começaria a ser esclarecida somente uma década depois, quando o argentino Claudio Vallejos – que havia participado da prisão, das sessões de tortura e testemunhado o assassinato de Tenório – revelou informações que dariam início à uma complexa investigação que levaria mais alguns anos para ser concluída. Numa época em que barba, cabelos compridos e japona compunham o típico figurino associado ao intelectual de esquerda, pode ser que Tenório tenha sido sequestrado exclusivamente por conta da sua aparência ou por ter sido confundido com um militante procurado da esquerda argentina – como contam algumas versões do sequestro deste homem que, apesar de não ter envolvimento com movimentos políticos, se tornou vítima daquela “caça” aos comunistas. E seja lá qual desses dois motivos tenha sido a verdadeira razão do sequestro, a certeza que temos é que – como diria Toquinho anos depois na música que dedicaria a ele – “Tenório saiu sozinho, na noite sumiu, ninguém soube explicar” (Lembranças, Toquinho/Mutinho, 1981).

O movimento nas ruas era intenso, característico daquele momento do dia em que as pessoas deixam fábricas e escritórios ao final de mais uma jornada de trabalho rumo ao tão merecido descanso. Os teatros começavam a abrir as suas portas e acender suas luzes, bares e restaurantes começavam a preencher suas mesas de fregueses, viajantes entravam e saiam do hotel enquanto eu permanecia paralisada em frente àquela placa que, em poucas palavras, havia me transportado para aquela triste madrugada em que Tenório cruzou aquela porta pela última vez, deixando sua esposa viúva e os seus cinco filhos sem pai. Naquela placa entendi e experimentei uma pequena fração do que sentiu Tenório durante os nove dias de tortura que sofreu até a chegada do tiro final, e do que sentiram seus familiares, amigos e colegas que precisaram aprender a conviver com a sua ausência. Estavam todos ali – cada qual com a sua própria dor – guardados no ensurdecedor silêncio daquela placa.

Alguns anos se passaram desde aquela tarde fria em que pisei pela primeira vez no mesmo chão onde Tenório há 45 anos atrás pisou pela última vez como homem livre. Nesse exato momento, o mundo inteiro começa a questionar e rejeitar a constrangedora presença de monumentos, estátuas e homenagens a torturadores e assassinos que escreveram páginas da história com sangue inocente nas mãos. Ao mesmo tempo, começa a ser reivindicada a presença daqueles que realmente precisam ser lembrados e homenageados: as vítimas. Se durante séculos a nossa história foi contada de forma parcial e mentirosa pelos vencedores, com os avanços tecnológicos no campo da comunicação essa realidade mudou completamente.

O surgimento dos primeiros veículos de comunicação, a impressão dos primeiros livros, a fabricação das primeiras câmeras fotográficas e gravadores de voz, a invenção do rádio, do telefone e da televisão e, finalmente o advento da internet como principal forma de investigação e propagação de notícias: o acesso à informação – que hoje acontece em tempo real – nos permitiu fazer um julgamento da história que conhecíamos até então, colocando em xeque a versão oficial dos fatos. Por essa razão, não só é preciso utilizar tais meios para escrever e registrar a história contemporânea de maneira ampla e justa, como também é preciso lançar um novo olhar para a história passada e reescrevê-la dando voz e lugar àqueles que foram até então intencionalmente excluídos e esquecidos. É papel do comunicador – seja ele escritor, político, jornalista, militante, líder religioso ou artista – preservar a memória através dos livros, músicas, monumentos, discursos ou manifestações. É preciso comunicar, como comunicam todas as quintas-feiras – há mais de quarenta anos – as Mães da Praça de Maio em busca dos seus filhos e netos; é preciso comunicar como comunicaram os veteranos da Guerra das Malvinas acampados em frente à Casa Rosada até terem os seus direitos devidamente reconhecidos; é preciso comunicar como comunicou Mercedes Sosa através da sua voz política de cantora. E é preciso comunicar como comunicou Marielle Franco até o dia do seu covarde assassinato em março de 2018; a mesma Marielle que, a partir desse mês, estará presente na estação “Rio de Janeiro” do metrô de Buenos Aires para que as milhares de pessoas que por ali passam diariamente nunca se esqueçam da sua luta e se inspirem no seu exemplo tão necessário.

No processo de narrativa da memória, é preciso cada vez mais preencher todos os espaços possíveis com as histórias de luta e resistência das vítimas e inocentes, ao mesmo tempo em que cancelamos o destaque que durante tanto tempo foi garantido a torturadores e assassinos que, infelizmente, ainda dão nome a tantas ruas pelas quais caminhamos. E assim, quem sabe chegará o dia em que estes vilões da história experimentarão, enfim, aquela que foi considerada pelos gregos a pior de todas as mortes: o esquecimento. Enquanto esse dia não chega, é preciso seguir lembrando que há 45 anos Tenório sumiu na noite e que há 3 anos Marielle foi brutalmente assassinada, para que eles – e todas as inúmeras vítimas das injustiças do mundo – estejam sempre presentes entre nós. Assim como Tenório e Marielle seguem presentes na admirável cidade de Buenos Aires.

Bruna Ramos da Fonte é biógrafa, escritora, fotógrafa ensaísta, professora e palestrante. Especialista em Leitura e Produção Textual com Aperfeiçoamento em Psicanálise Clínica, é criadora da sua própria metodologia no campo da Escrita Terapêutica. É autora de diversos títulos, incluindo “Escrita Terapêutica: um caminho para a cura interior” (Letramento, 2021) e as biografias de Sidney Magal e Roberto Menescal. Visite: www.brfonte.com