COMUNICAÇÃO ACESSÍVEL E SEM FRONTEIRAS - Machado de Assis e a era dos influenciadores digitais: você não pode acreditar que vale os 'likes' que tem. Por Bruna Ramos da Fonte.

Desde criança, eu sabia que seria escritora. Meus colegas queriam ser médicos, engenheiros, advogados e naquela época não conhecia nenhuma outra criança ou adolescente que também cogitasse seguir a carreira com a qual eu tanto sonhava. Na minha inocência pueril, acreditava que isso faria de mim facilmente uma escritora de sucesso, pois não haveria grande concorrência na área que havia escolhido seguir. O que eu não havia observado é que, de todos os meus colegas, eu era também a única que lia avidamente – não somente os livros que a escola indicava, mas dezenas de outros títulos que encontrava lá em casa. Se existem estudos indicando que, para que possamos criar o hábito da leitura, é necessário ler durante pelo menos quatro mil horas ainda na infância, aqui no Brasil – onde o hábito da leitura é coisa rara de se ver – muitos jovens terminam o Ensino Médio sem ter lido um único livro, então quando iniciei a minha carreira literária, percebi o quanto seria difícil ser escritora em um país onde os leitores parecem estar em extinção. Mas, sigo acreditando que todos deveríamos ter a oportunidade de exercitar este hábito tão benéfico e necessário para o nosso desenvolvimento psíquico e intelectual; e, mais do que isso, também acredito que todos deveríamos conhecer ao menos uma amostra das obras fundamentais que sustentam as bases da nossa literatura.

Sempre que alguém – seja um jovem ou adulto – pergunta para mim quais são as leituras essenciais para quem deseja iniciar uma viagem pelo mundo da literatura brasileira, indico prontamente os contos do escritor Machado de Assis (1839-1908). Sempre muito reflexivo, inteligente, acessível e atual – apesar das tantas décadas que nos separam da sua produção –, Machado é um autor apaixonante. De todos os seus contos, o meu preferido talvez seja “O espelho”, no qual ele fala sobre a existência de duas almas na composição de cada indivíduo: a alma exterior e a alma interior. A primeira seria a nossa imagem – aquela que é mutável, que se cria no imaginário das pessoas a partir do status e do poder que conquistamos no nosso núcleo social – enquanto que a segunda seria a nossa identidade – aquela que é imutável e representa a nossa essência mais pura e verdadeira, não dependendo de status ou poder para existir. Em resumo, enquanto a primeira representa a superficialidade do “parecer”, a segunda engloba toda a profundidade do “ser”. No conto, Machado reflete sobre o quanto a alma exterior – criada a partir da opinião que os outros formam sobre quem somos – tem o poder de interferir e deturpar a imagem que temos sobre nós mesmos, podendo causar um dano irreversível na nossa capacidade de autopercepção; no momento em que a alma exterior passa a dominar a alma interior, perdemos imediatamente a capacidade de nos expressar de maneira genuína e nos tornamos impostores dentro das nossas próprias vidas. Por outro lado, quando alma interior e exterior estão em consonância, ao longo do tempo cria-se uma reputação – que é a consolidação da imagem após verificar-se que ela condiz com a identidade daquele indivíduo.

Através do personagem Jacobina – um jovem pobre que, ao ser nomeado alferes da Guarda Nacional, perde-se de si mesmo ao alcançar tal status –, Machado demonstra como ele deixa de ser quem era ao vestir a máscara do cargo que passa a ocupar, sendo celebrado pelos seus que se realizam através do status alcançado por ele e, com isso, lança um olhar sobre o quanto, por vezes, as máscaras e personagens que interpretamos são mais valorizados pela sociedade do que o ser humano por trás do cargo que ocupamos. Quase cento e cinquenta anos se passaram desde a primeira publicação deste conto; os tempos mudaram, dezenas de palavras caíram em desuso e até mesmo o “alferes” hoje se chama “segundo-tenente”. Mas, se teve algo que não mudou nada desde então foi a importância do pensamento atemporal explorado por Machado sobre esse eterno conflito entre “ser” e “parecer” – algo cada vez mais evidente em tempos dominados por influenciadores e redes sociais.

Tenho o hábito de perguntar aos meus alunos no campo literário sobre as suas razões e motivações para escolherem a carreira de escritor. Acredito que escrever seja algo que fazemos atendendo a um chamado muito profundo e pessoal, a partir de uma necessidade visceral de compartilhar nossos pensamentos e percepções. Não se escolhe ser escritor; descobre-se escritor no momento em que esse chamado faz brotar um grito de dentro do peito que se converte em palavras derramadas no papel. Porém, já conheci muitos aspirantes a escritores que, ao serem questionados, alegaram escrever em busca de alcançar fama, dinheiro, status ou aquele glamour que muitos associam à carreira literária. Você pode achar que estou errada – ou que sou idealista demais –, porém sigo acreditando que o desejo de ser rico ou famoso não é – e nunca foi – motivo plausível para se escolher uma profissão. E, para mim, o mesmo conceito se aplica à esta nova “carreira” que nasceu com o “boom” das redes sociais: a de influenciador. Iludidos com as ideias que criam sobre o mundo dos famosos e poderosos, muitos enxergam nas redes sociais um atalho para a fama sem pensar que, antes de mais nada é preciso ter o que oferecer para o seu público. O bom influenciador é aquele que influencia naturalmente, a partir do seu exemplo e da sua capacidade mais genuína de agir e falar sobre os seus pensamentos e vivências. Portanto, não há um curso ou treinamento para ser um influenciador de verdade.

Diz o ditado que, “quem não aparece não é visto”. Mas até onde somos capazes de chegar para garantir que seremos vistos? Desde que o mundo é mundo, o ser humano realiza as mais inusitadas proezas em busca de um quadradinho nas páginas do jornal, por uma posição no Guinness World Records ou até mesmo para chamar a atenção da sociedade para uma causa nobre – nem que, para isso, seja necessário arriscar a própria vida ou reputação. E nesta jornada vale tudo: descer as Cataratas do Niágara em um barril, cruzar oceanos em um carro flutuante ou até mesmo voar amarrado a balões cheios de gás hélio. Quando aplicamos essa mesma lógica ao mundo das redes sociais, o que vemos são pessoas muitas vezes dispostas a mentir ou a gastar o dinheiro que frequentemente não têm para comprar seguidores e, assim, transmitir a ideia de que são capazes de alcançar um número elevado de pessoas com as suas publicações. Aliás, essa compra de seguidores é algo que se tornou tão comum que, até mesmo aqueles que já têm uma carreira consolidada, por vezes se deixam levar pela ilusão de aumentar de forma rápida e fácil a sua popularidade nas redes sociais; afinal estamos vivendo um momento no qual se torna cada vez mais frequentemente vermos o nosso valor enquanto pessoas, profissionais ou artistas diretamente vinculado ao número de pessoas que nos acompanham nas redes sociais. Dependendo da área de atuação de um profissional, quanto mais seguidores, maiores se tornam as suas chances de assinar novos contratos e de, consequentemente, ganhar dinheiro. Mas, de nada adianta ter “um milhão de amigos” – como diz a música do Roberto Carlos – nas redes sociais, se estes seguidores não forem pessoas que realmente acompanham e admiram o trabalho daquele influenciador. E aí, a ideia da influência vai por água abaixo, porque estes seguidores – muitas vezes provenientes de perfis falsos ou inativados – não se engajarão com aquele perfil e, muito menos, irão consumir conteúdo, produtos ou serviços oferecidos por aquele influenciador.

E quando falamos nos influenciadores artificiais – aqueles personagens virtuais criados pelas marcas com a intenção de estabelecer um vínculo “humanizado” com os seus consumidores – o assunto se torna ainda mais delicado. Porque a escolha de garotos-propaganda ou embaixadores de marca reais se baseia na vinculação de toda a credibilidade que aquela pessoa – frequentemente um artista ou profissional de referência na sua área de atuação – é capaz de transmitir à marca ao endossar um produto ou serviço através da associação da sua imagem. Neste caso, como a própria marca é criadora do seu influenciador, através de quem – de forma totalmente parcial –, endossa um produto ou serviço, o que – no meu ponto de vista – excluí automaticamente toda a credibilidade desta ação.

Tenho vivido e acompanhado de perto situações nas quais estamos sendo medidos pelo número de seguidores que apresentamos nas nossas redes sociais. Acredito que estamos cometendo um grande engano ao agir dessa maneira, pois este número – muitas vezes fantasioso – não condiz com a realidade de quem somos e nem mesmo está associado ao nosso poder de influência. Ser influenciador é uma posição que não se escolhe e nem se compra: é algo que acontece naturalmente. E neste assunto – como em muitos outros – o que conta não é a quantidade, mas sim a qualidade das nossas interações e relações que estabelecemos com as pessoas que nos acompanham não somente nas redes sociais, mas principalmente no mundo real. Convertendo o conceito do conto machadiano para a nossa realidade virtual, os números de seguidores e “likes” podem alimentar a imagem que as pessoas criam sobre nós mesmos, mas não deveriam ter o poder de nos afastar da nossa verdadeira identidade – o que inevitavelmente acontece quando optamos por levar as aparências mais a sério do que a nossa própria essência. Seja lá quantos seguidores existam hoje nas suas redes sociais, desejo que você seja capaz de se comunicar com eles de maneira genuína e verdadeira, se deixando guiar pela riqueza que reside na sua alma interna – aquela que não depende de um número de seguidores para ser ou existir e que é o único caminho capaz de conquistar e influenciar o outro de forma profunda, honesta e duradoura.

Imagem da autora: “Um grafite no Rio de Janeiro retratando o pintor espanhol Pablo Picasso: são os artistas naturalmente capazes de influenciar e inspirar pessoas através das mensagens transmitidas pela sua arte”.

Bruna Ramos da Fonte é biógrafa, escritora, fotógrafa ensaísta, professora e palestrante. Especialista em Leitura e Produção Textual com Aperfeiçoamento em Psicanálise Clínica e MBA em Jornalismo Digital, é criadora da sua própria metodologia no campo da Escrita Terapêutica. É autora de diversos títulos, incluindo “Escrita Terapêutica: um caminho para a cura interior” (Letramento, 2021) e as biografias de Sidney Magal e Roberto Menescal. Visite: www.brfonte.com