COMUNICAÇÃO ACESSÍVEL E SEM FRONTEIRAS - Estamos transformando "nativos digitais" em "cretinos digitais". Por Bruna Ramos da Fonte.

Quando eu era criança, ocasionalmente meu pai visitava um casal de tios seus que tinham uma mercearia na esquina da casa onde viviam, então aquelas visitas eram uma verdadeira festa para mim: era uma daquelas mercearias que a gente já não encontra mais por aí, com prateleiras altas de madeira – sempre muito bem abastecidas de tudo aquilo que o freguês poderia precisar – e um balcão comprido – cheio de caixas de chocolates, balas e Polenguinho –, capaz de fazer qualquer criança muito feliz. No mesmo terreno da casa deles, moravam os pais do meu tio-avô – dona Deolinda e seu Antônio, meus tios-bisavós – um casal de portugueses já bastante idosos. Dela eu tenho poucas lembranças, mas me lembro que costumava passar bastante tempo sentada na cozinha da minha tia-avó conversando com o seu Antônio. Me lembro com muito carinho das nossas conversas, mas principalmente, da forma como ele falava comigo, como se estivéssemos exatamente no mesmo nível e não com aquela aura de superioridade que os adultos costumam usar para falar com crianças. Ele contava histórias da sua vinda para o Brasil, compartilhava suas ideias e pensamentos, fazendo com que eu pudesse vislumbrar mundos que ainda desconhecia, habitados por dores, conquistas e valores completamente distantes da criança de seis ou sete anos que eu era. Aquelas conversas transmitiram ensinamentos tão profundos que, veja só: tantos anos depois, cá estou recorrendo a estas memórias para escrever um texto. Memórias que eu tive a chance de registrar na minha mente por ter crescido em um mundo onde tablets e smartphones ainda estavam distantes de existir, já que hoje esse tipo de interação acontece com uma frequência cada vez menor, pois cada um – da criança ao idoso – se entretém com o seu próprio aparelho de estimação.

Antes que você pense que estou aqui para demonizar a tecnologia – ou para levantar bandeiras contra os avanços tecnológicos das últimas décadas –, me permita esclarecer de antemão que não é esta a minha intenção, pois sou completamente a favor da tecnologia – desde que ela seja usada de forma consciente, sábia e equilibrada para que possa atuar como a grande aliada que tem o potencial de ser para nós. Infelizmente, o que vemos com maior frequência é o completo oposto: estamos criando um vínculo tóxico com telas e aparelhos, fazendo deles uma grande barreira para o contato humano. Para aqueles que já nasceram inseridos nesta realidade o problema é ainda maior: para os nativos digitais, infelizmente a presença das telas acaba sendo muito mais constante do que abraços e carinhos de pais, tios e avós.

Apesar de ser uma realidade cada vez mais comum, confesso que eu não consigo normalizar essa ideia de crianças ainda na primeira infância serem donas dos seus próprios aparelhos eletrônicos, com tablets e smartphones nas mãos enquanto deveriam estar brincando na terra, desenhando ou modelando massinha, sendo expostas a situações e experiências reais a fim de desenvolverem plenamente o seu potencial. Pela primeira vez na história, estamos vendo em países desenvolvidos – como Finlândia e Noruega – crianças apresentarem QI mais baixo em relação aos seus pais e a razão desse retrocesso se dá pelo tempo que as crianças hoje passam em frente às telas.

Tanto Bill Gates quanto Steve Jobs – fundadores da Microsoft e da Apple, gigantes da tecnologia e da comunicação em rede – em algum momento, ao serem questionados sobre as suas respectivas relações com a tecnologia que fabricavam, declararam restringir o acesso aos aparelhos eletrônicos para os seus próprios filhos. Se para o cidadão comum a tecnologia por vezes é vista como a babá ideal, desenvolvedores e fabricantes sempre tiveram consciência dos impactos negativos que a inserção no mundo tecnológico e digital antes do tempo pode causar à mente humana. Na infância, temos um grau elevado de plasticidade cerebral que permite o desenvolvimento de talentos e habilidades com muito mais agilidade e facilidade do que na vida adulta. Você já deve ter ouvido falar que aprender na infância é sempre mais fácil, não? Isto é verdade, mas para que esse potencial possa ser exercido, o cérebro precisa receber estímulos, aprendizados e experiências sensoriais e intelectuais a fim de desenvolver a inteligência. Portanto, os estímulos que recebemos – ou deixamos de receber – nos nossos primeiros anos de vida são responsáveis por pavimentar os caminhos dos adultos que potencialmente iremos nos tornar. Frequentemente vemos pessoas que, cansadas por conta das suas preocupações e rotinas de trabalho – ou até mesmo por falta de paciência ou aptidão com crianças –, permitem que seus filhos, sobrinhos e netos sejam criados pela tecnologia, deixando de transmitir a eles toda essa carga impagável de saberes e histórias. A transmissão desse conjunto de experiências é fundamental para o desenvolvimento do indivíduo e jamais poderão ser oferecidas ou substituídas por tablets, TVs ou smartphones.

No seu livro “A fábrica do cretino digital” (em pré-venda no Brasil), o neurocientista francês Michel Desmurget atesta que, com base nos seus estudos, atualmente crianças de dois anos de idade passam em média duas horas por dia em frente às telas; um número que cresce para cinco horas aos oito anos de idade e para sete na adolescência. Quando as experiências que estas crianças e adolescentes poderiam viver na vida real são trocadas por momentos em frente às telas – que apresentam um baixo potencial de estímulo cerebral – as perdas são irreparáveis: o desenvolvimento intelectual e emocional é prejudicado, fazendo com que a potencialidade daquela criança ou adolescente não seja satisfatoriamente desenvolvida; devido à falta de estímulos, o desenvolvimento linguístico e o repertório cultural também acabam sendo. Além do mais, aparelhos com acesso à internet se tornam portas abertas para um mundo extremamente complexo e perigoso para aqueles que ainda não têm maturidade para navegar com segurança. Ao permitirmos livre acesso ao mundo virtual, a criança fica inevitavelmente exposta à ação de criminosos ou pedófilos.

Para os antigos egípcios, nós teríamos não cinco, mas seis sentidos: além do tato, olfato, paladar, visão e audição, eles consideravam o pensamento como um sexto sentido do ser humano, já que é a nossa capacidade de raciocinar – e, consequentemente, de criar – o que nos diferencia dos outros seres vivos. O famoso Olho de Hórus é uma representação simbólica desta ideia, já que as cinco partes que compõem o olho representam os cincos sentidos que tão bem conhecemos e a sobrancelha representa o pensamento. E não é à toa que o pensamento foi posicionado acima do olho: são os cinco sentidos básicos que norteiam a nossa percepção e guiam a nossa experiência no contexto do mundo no qual estamos inseridos. Assim, o pensamento seria a consequência das vivências e estímulos que recebemos através dos cinco sentidos básicos; sendo o pensamento resultado das experiências sensoriais que experimentamos ao longo da vida, podemos concluir que, quanto mais profundas forem, maior será a nossa capacidade de pensar.

Tudo aquilo que existe no mundo é fruto do pensamento de alguém: as leis da Física capazes de nos levar até a Lua, os quadros e estátuas que preenchem os espaços dos museus, o design dos móveis sobre os quais trabalhamos e nos alimentamos. Tudo nasceu dentro do cérebro de alguém porque esta pessoa teve capacidade de pensar e criar, portanto, sem desenvolvermos o pensamento, retornamos ao estágio selvagem onde nada de novo se cria. E é por esta razão que eu peço a você que convive com uma criança, que reflita bastante sobre o quanto as suas próprias escolhas podem estar atrapalhando o desenvolvimento humano, cultural, sentimental e intelectual destes adultos do futuro: deixar crianças serem criadas pela tecnologia pode facilitar muito a sua rotina atual, mas não tenho dúvidas de que, a longo prazo, os resultados dessa prática serão extremamente tristes para a nossa sociedade como um todo.

Apesar das preocupações em relação à criança no contexto do mundo digital, não podemos nos esquecer do quanto essa realidade afeta também o adulto que, quanto mais tempo passa em frente às telas, menos exercita a sua capacidade de pensar e questionar. Para refinar cada vez mais a nossa capacidade de raciocinar – e fazer um bom uso desta máquina extraordinária que é o nosso cérebro como resultado de milhares de anos de evolução – é preciso sair da zona de conforto. E, para isso, é fundamental que você se exponha constantemente a novas situações, aprendizados e conversas a fim de ampliar as suas experiências sensoriais e intelectuais. Transitar exclusivamente pelos mundos que nos são familiares oferece uma confortável sensação de segurança, mas também faz de nós pessoas estagnadas: é a partir do momento em que nos dispomos a explorar o novo que somos desafiados a ampliar os nossos horizontes.

Seja através de livros ou conversas, ouvir e contar histórias sempre foi – e continua sendo – a melhor maneira de ensinar e aprender. Por que não começar ainda hoje a trocar os momentos excessivos em frente às telas por bons livros ou conversas prazerosas? Estou certa de que você perceberá os ganhos dessa troca imediatamente. E antes de nos despedirmos, o que eu desejo sinceramente é que, quando o futuro chegar, alguém possa se recordar de você com o mesmo carinho com o qual me recordo do seu Antônio: não seja aquela mãe ou aquele avô que será lembrado no futuro por ter deixado os momentos mais encantadores da vida real serem substituídos pela artificial ilusão de uma tela, um campo de vidro onde flores não perfumam e abraços não aquecem a alma.

Foto: da autora.

Bruna Ramos da Fonte é biógrafa, escritora, fotógrafa ensaísta, professora e palestrante. Especialista em Leitura e Produção Textual com Aperfeiçoamento em Psicanálise Clínica, é criadora da sua própria metodologia no campo da Escrita Terapêutica. É autora de diversos títulos, incluindo “Escrita Terapêutica: um caminho para a cura interior” (Letramento, 2021) e as biografias de Sidney Magal e Roberto Menescal. Visite: www.brfonte.com