COMUNICAÇÃO ACESSÍVEL E SEM FRONTEIRAS - Essa é só mais uma história guardada nos pregos da casa de Violeta Parra. Por Bruna Ramos da Fonte.

Era janeiro e eu estava passando férias na casa dos amigos Antonio Skármeta e Nora Preperski em Santiago. E, caso não tivesse resolvido ver uma exposição no Palacio de La Moneda logo após o almoço, aquela teria sido mais uma agradável tarde de verão no jardim com a minha amiga – entre conversas e taças de vinho branco com pedras de gelo – enquanto Antonio trabalharia em seu novo livro no escritório de vidro ao lado da piscina. Se não tivesse saído, teria também evitado o assalto hilário do qual fui vítima assim que deixei o Palacio – uma longa história, digna de roteiro de comédia-pastelão – e que quase me fez perder o jantar que, naquela noite, um casal de amigos ofereceria para mim. Mas, se não tivesse saído naquela tarde, eu também não teria essa história para contar.

Quando cheguei ao Palacio, soube que ali estava acontecendo uma pequena exposição sobre a obra visual de Violeta Parra. Conheci a sua música ainda criança, através dos discos da minha mãe e dos tantos concertos do Tarancón e Raíces de América aos quais ela me levou – dois grupos importantíssimos para a difusão da música latino-americana e que foram a minha porta de entrada para o cancioneiro da nossa América Latina. Apesar de conhecer a fundo a sua obra musical, naquele momento eu ainda não tinha dimensão alguma da profundidade da sua produção visual e imediatamente escolhi conhecer a obra visual da Violeta.

Ao ver as obras expostas, compreendi imediatamente a importância daquela produção que fizera com que Violeta se tornasse a primeira mulher latino-americana a expor no Museu do Louvre em Paris. E passei as duas horas seguintes ali, vendo e revendo aquelas peças – para preocupação do segurança que, com toda a certeza, não entendia a razão da minha demora em uma exposição tão pequena, vindo a cada cinco minutos verificar se tudo continuava no seu devido lugar. Nas cores das suas telas, nas linhas dos seus bordados, nos relevos de papel machê e na argila das suas cerâmicas, encontrei as mesmas questões que moravam nos versos e nas melodias que eu conhecia tão bem. Apesar de se tratar de uma produção diversificada, cada obra se encaixava perfeitamente à outra, como peças de um mesmo quebra-cabeça; são obras que conversam entre si, num diálogo artístico que expressa exatamente as mesmas inquietações, ideias e ideais de forma complementar. Não raro, Violeta também se ocupou em registrar as mesmas histórias em diferentes formatos, como é o caso da música Casamiento de Negros – que no Brasil se popularizou com a gravação do Milton Nascimento com Mercedes Sosa – que, além de música, é também uma tela maravilhosa onde ela retratou todas as cenas cantadas nos versos, em um formato que nos remete à uma história em quadrinhos folk.

Ao conhecer suas obras, ficou claro que, para uma alma profunda e inquieta como a de Violeta, uma única plataforma para comunicar e expressar as suas ideias e pensamentos jamais teria sido suficiente. Ela se utilizou de todos os recursos aos quais tinha acesso e, com isso, compôs uma obra que precisa ser conhecida na sua totalidade para ser compreendida com propriedade. São obras que funcionam como extensões umas das outras e que, nitidamente, não nasceram da intenção da artista em atingir diferentes públicos; se trata de uma obra que nasceu essencialmente da sua própria necessidade de múltipla expressão, para traduzir sua alma em cores, formas, versos e melodias. Já era final de tarde quando o segurança se aproximou informando que o Palacio estava prestes a fechar e eu deixei a sala, iniciando a partir daquele dia uma extensa pesquisa sobre a vida e a obra da artista.

Algum tempo se passou após aquela tarde em Santiago. Eu estava no Rio de Janeiro pesquisando para um novo projeto, quando soube que a neta de Violeta também estava na cidade. Mais do que depressa, marquei uma entrevista com ela e foi assim que, poucos dias depois nos conhecemos. Ao chegar na casa onde Tita estava hospedada, encontrei uma mulher extremamente familiar e a nossa identificação foi imediata, fazendo nascer ali uma grande amizade e, em algum momento da conversa, ela me contou que vivia na casa onde viveu Violeta – a famosa “casa de palos”. Pouco antes de nos despedirmos, Tita generosamente me convidou para conhecer a sua casa e, também, para passar o tempo que precisasse vivendo ali, a fim de aprofundar a minha pesquisa sobre a sua avó e sobre a cultura chilena. Três meses depois, eu embarcava em um voo rumo a Santiago.

O ano era 1957 e Casamiento de negros havia acabado de ser gravada nos Estados Unidos pela orquestra do Les Baxter – um grande nome da música americana naquela época – e, com o valor recebido pelos direitos autorais, Violeta comprou um terreno na região onde hoje se encontra o bairro de La Reina e que havia sido, até então, uma plantação de maçã. No ano seguinte, com o auxílio do cunhado e do seu irmão Roberto – o mesmo Roberto que poucos anos depois seria preso durante uma greve e teria essa passagem de sua vida eternizada na música “La carta”, uma das suas composições mais famosas –, Violeta construiria aquela casa com as suas próprias mãos. As mãos de compositora, ceramista, pintora e poeta foram exatamente as mesmas mãos que bateram os pregos que uniram aquelas tábuas, fazendo com que a construção se tornasse quase que naturalmente uma extensão de sua obra. Era verão e, enquanto o telhado não ficava pronto, Violeta e os filhos dormiram abrigados pelas paredes de madeira e cobertos pelo manto de estrelas do céu de Santiago. Para preencher as nossas noites frias de inverno, Tita se preocupou em convidar vários amigos para jantares que se converteram em verdadeiros espaços de intercâmbio histórico e cultural. Me lembro de uma noite em que estávamos todos sentados no chão da sala, ao redor da mesa de centro compartilhando uma garrafa de vinho, e o Raul Aliaga – um dos integrantes da banda Congreso – uma das mais importantes bandas de folk rock da América Latina – começou a falar sobre as tantas pessoas que, assim como nós naquele exato momento, haviam se encontrado na simplicidade daquela casa de madeira onde tantas amizades surgiram, onde tantos projetos e ideias germinaram ao longo das décadas. Quantas histórias haviam testemunhado aqueles pregos que a própria Violeta um dia cravou na madeira? Quantas histórias eles ainda testemunhariam? Flutuando nesses devaneios vimos o dia amanhecer, contando e vivendo histórias que, sem dúvida alguma, ainda estão pregadas nos nós das paredes de madeira que sustentam aquela casa.

Dormindo e acordando cercada pela presença de Violeta, vi os dias e as semanas passarem pelas mesmas janelas de onde ela viu amigos chegarem e amores partirem. No canto da sala, enxerguei o vulto da menina que começou a tocar aos sete anos de idade – contrariando o desejo do pai que, além de professor, era músico e folclorista, mas não desejava que os filhos seguissem o seu caminho; debaixo da escada encontrei a adolescente que abandonou os estudos para cantar profissionalmente ao lado dos irmãos; entre as flores do jardim vi a mulher que se casou numa tentativa de se enquadrar na vida que era esperada para ela, mas que se separou ao perceber que o marido não gostava do seu trabalho e que ela não atendia à expectativa dele que desejava apenas ter uma mulher que pudesse limpar a casa, cozinhar e cuidar exclusivamente da família; vi a mãe que – encorajada pelo irmão e poeta Nicanor –, empreendeu uma longa viagem pelos campos para pesquisar, registrar e reunir a música folclórica do seu país em um material a partir do qual surgiria o movimento que conheceríamos como Nueva Canción Chilena. Em cada canto daquela casa, encontrei os sorrisos e as lágrimas de quem escolheu ser mais do que o destino guardava para uma mulher daquela época.

Criticada pela direita burguesa pelo conteúdo político das suas canções, nas suas obras Violeta contou as histórias dos trabalhadores do campo, denunciou a injustiça e a desigualdade social, cantou a sua vida em versos autobiográficos de amor e questões existenciais de alguém que se propôs a desafiar as normas vigentes. Violeta nadou contra a corrente das convenções sociais, mas o ônus dessas escolhas fizeram com que ela trilhasse, inevitavelmente, o caminho em direção à bala que deu um fim à sua vida em uma tarde de domingo.

Em uma das nossas conversas na “casa de palos”, Tita me disse algo que nunca esqueci e que me acompanha desde então: “por vezes a nossa maior bênção é, também, a nossa maior maldição”. Nessa frase cabemos todas nós que escolhemos ser mais do que as nossas histórias quiseram que fôssemos, que vivemos todos os dias acompanhadas pelo ônus das nossas escolhas. É claro que, a cada geração que passa, esse fardo se torna um tanto mais leve, mas ainda assim continua pesado. É por mulheres como Violeta – que tiveram a coragem de abrir os caminhos que hoje trilhamos com um pouco mais de leveza – que temos a obrigação de seguir rompendo padrões e espalhando as nossas histórias aos quatro ventos em alto e bom tom. Assim como fez Violeta, que deixou as suas ideias e ideias gravados nos mais distintos formatos, para que a sua mensagem alcançasse os quatro cantos da Terra e pudesse ser compreendida por todos.

Imagem: Bruna Ramos da Fonte.

A janela da casa de Violeta, por onde vi os dias e as semanas passarem.

Bruna Ramos da Fonte é biógrafa, escritora, fotógrafa ensaísta, professora e palestrante. Especialista em Leitura e Produção Textual com Aperfeiçoamento em Psicanálise Clínica, é criadora da sua própria metodologia no campo da Escrita Terapêutica. É autora de diversos títulos, incluindo “Escrita Terapêutica: um caminho para a cura interior” (Letramento, 2021) e as biografias de Sidney Magal e Roberto Menescal. Visite: www.brfonte.com