COMUNICAÇÃO ACESSÍVEL E SEM FRONTEIRAS - Com quem dialoga o comunicador solitário? Por Bruna Ramos da Fonte.

Quando vivia no Rio, dormia cedo, acordava com os primeiros raios de Sol e ia direto para a praia ver o dia começar nas areias do Recreio, na companhia de um copo de mate com limão e de uma empada Praiana. Quando em Havana, todos os dias caminhava até o Malecón para ver o poente e, religiosamente, nas noites de quinta, ouvia música no Jazz Café. Quando em Buenos Aires, noite ou outra madrugava em alguma padaria 24 horas conversando com Werner Amadeo – um grande amigo que tenho por lá – para ver o Sol nascer trazendo o aroma das media lunas quentinhas que saem com o amanhecer. Aliás, sempre gostei de ver o Sol nascer e o dia começar nas capitais: me encanta assistir o vazio das ruas pouco a pouco sendo preenchido pelo movimento de pessoas e o silêncio da cidade na madrugada sendo substituído pela melodia dos motores atrasados e dos passos apressados.

Nunca gostei de me sentir turista em lugar algum e posso dizer com toda a certeza que me senti em casa em todos os lugares nos quais já vivi. Tive a oportunidade de experimentar a vida diária de cada cidade, me aprofundar nas amizades que fiz, criar hábitos novos e vivenciar experiências completamente distintas e distantes da minha realidade original. Isso por vezes me traz a sensação de ter vivido diversas vidas dentro de uma só, e sei que todas essas experiências – que me permitiram sentir na pele as alegrias e as dores que sentem as pessoas dos lugares onde vivi – fizeram de mim uma pessoa muito mais completa e compreensiva. E fez com que eu me tornasse, também, uma escritora melhor, pois me expus a situações que a minha rotina calma e introspectiva de escritora não me permitiriam viver. No tempo em que não estou escrevendo, ser escritora se torna um grande pretexto para viver de uma forma plena e profunda as experiências que a vida me traz.

Que a escrita é um dos ofícios mais solitários que existe todo mundo já sabe. Mas, se no momento da escrita o escritor precisa realmente da concentração e do silêncio que somente a solidão é capaz de conceder, nos momentos em que não está escrevendo, ele precisa se preocupar em preencher o seu tempo com pessoas, livros, ideias e lugares. Precisa ser alguém sempre muito disposto a viver experiências diferentes daquelas que a sua rotina é capaz de proporcionar, para que possa ampliar o seu repertório e exercitar a sua habilidade de vivenciar realidades que estão além da sua própria. Para ser um bom escritor, é preciso ser um grande observador, estar sempre disposto a aprender e a questionar tudo aquilo que já se sabe. E é preciso, principalmente, saber ouvir: ouvir o outro é sempre a melhor maneira de ampliar o seu conhecimento sobre os sentimentos, reações e pensamentos do ser humano, pois é uma forma de experimentar diferentes experiências e emoções sem precisar necessariamente vivê-las em primeira pessoa. Como posso escrever sobre alguém que nasceu em um contexto oposto ao meu, se não estiver disposta a calçar os seus sapatos e me colocar no seu lugar de forma isenta e sem julgamentos? Se não for suficientemente sensível para sentir e compreender um tanto daquilo que se passa na sua mente e no seu coração?

Quando me perguntam qual é a maior qualidade que um bom escritor precisa ter, sempre repito a mesma coisa: conteúdo. E, para ter conteúdo, é preciso viver, pois é com a bagagem das nossas experiências pessoais que preenchemos as linhas que escrevemos. Confesso que prefiro uma história consistente e gramaticalmente mal escrita a um texto muito bem redigido e vazio de conteúdo; para gafes gramaticais, há a revisão, mas para a falta de conteúdo não há milagre que um revisor possa fazer. Observo que frequentemente nos atemos às palavras bonitas e ao domínio do idioma – como se a escrita fosse só isso – e acabamos nos esquecendo do principal: ser escritor nasce da nossa necessidade de compartilhar ideias. E para compartilhar ideias, a pessoa não precisa nem mesmo ter sido alfabetizada ou estar apta a escrever com as suas próprias mãos, pois basta que ela dite a sua narrativa para alguém que possa transformar as suas ideias em letras, palavras e páginas. Você já pensou nisso? E se achar absurdo o que estou dizendo, basta recorrermos à história de Jean-Dominique Bauby – editor da revista Elle francesa – que, após sofrer um AVC e ficar com todos os seus movimentos comprometidos, ditou um livro inteiro utilizando o movimento de uma única pálpebra. (Se você ainda não conhece essa história, não deixe de ler “O escafandro e a borboleta” ou de assistir à emocionante adaptação cinematográfica homônima).

Agora, se nesta linha de raciocínio que estamos desenvolvendo, o autor é este personagem que precisa vivenciar e experimentar a fim de obter o substrato necessário para construir seus textos, quando pensamos no processo de escrita temos então um outro problema que pode aparecer no meio do caminho: a solidão que nos acompanha durante o processo de concepção de uma narrativa por vezes faz com que tenhamos dúvidas se estamos conseguindo expressar ideias e pensamentos com clareza e, principalmente, se eles serão capazes de atingir o nosso público leitor de forma acessível. É comum que, enquanto escreve, o autor se pergunte se está no caminho certo ou se está tendo sucesso na missão de estabelecer um diálogo com o leitor. Se existem alguns ofícios literários onde é possível construir a narrativa diária ou semanalmente – como é o caso da dramaturgia das telenovelas ou seriados que podem ter o curso das suas histórias modificado levando-se em consideração as reações do público – com o autor de livros acontece o oposto, pois normalmente só temos o feedback do leitor após o lançamento do livro. E aí pode ser tarde demais.

É claro que, para resolver essa questão, cada autor adota a sua própria fórmula, de acordo com o seu perfil. Alguns optam por reunir um grupo de pessoas da sua confiança para fazer uma leitura coletiva daqueles trechos do manuscrito sobre os quais está em dúvida, enquanto que outros preferem pedir a um grupo seleto que leia a versão final do texto antes do envio para a editora. Gabriel García Márquez, por exemplo, durante a escrita de “Cem anos de solidão” na década de 1960, publicou alguns capítulos avulsos do livro em revistas e jornais para os quais colaborava a fim de entender como seria a recepção daquela história junto ao leitor. Como estas publicações eram distribuídas em dezenas de países, ele conseguiu obter uma amostragem bastante rica e diversificada vinda de públicos completamente diversos. Hoje, ao compararmos o livro que temos nas mãos e os textos avulsos publicados pelo autor, são nítidas as diferenças entre um e outro, pois ele fez modificações substanciais na linguagem, na estrutura dos textos, na ordem dos acontecimentos e até mesmo nos aspectos históricos e psicológicos dos personagens. Graças às observações dos seus leitores, ele foi capaz de lapidar a sua narrativa até chegar no resultado final: a obra-prima que é “Cem anos de solidão”.

Particularmente não gosto de mostrar os meus escritos para ninguém antes que o livro esteja completamente finalizado, então quando estou escrevendo sobre um determinado assunto e me vejo em dúvida sobre algum tema ou abordagem, busco inserir essa questão nas minhas conversas do dia a dia a fim de ouvir o que as pessoas pensam sobre aquele determinado assunto. Assim, vou colhendo opiniões para ampliar os meus horizontes e elas me ajudam a enxergar o tema a partir de outras perspectivas diferentes das minhas. Principalmente quando se trata de temas delicados – como racismo ou preconceito –, essa amostragem é muita valiosa, pois me ajuda na construção de uma narrativa que englobe aspectos capazes de dialogar com os mais diversos grupos de pessoas. Então, se você é meu amigo e está lendo esse texto, saiba que é muito provável que você já tenha participado do meu processo de escrita através das nossas conversas.

Entardecer às margens do Río de la Plata, no Uruguai: o escritor precisa ser um verdadeiro observador do cotidiano.

Se você é um escritor ou comunicador, aconselho que valorize sempre as questões que emergem do seu cotidiano, pois temos uma tendência muito grande a desvalorizar as nossas experiências e acabamos por não perceber a grandiosidade das ideias e vivências que poderíamos compartilhar com o público. Lembre-se que, as maiores obras da arte e da literatura que conhecemos, nasceram na simplicidade cotidiana dos seus autores e criadores. Se não tivesse vivido intensamente os seus dias em Paris, Ernest Hemingway não teria escrito “Paris é uma festa”, sem a sua temporada na Espanha não haveria “O verão perigoso” e, sem a sua paixão por Cuba, não teríamos esta que é uma das maiores obras literárias de todos os tempos: “O velho e o mar”. Se não tivesse passado a vida trabalhando como funcionário público – acompanhando e assistindo as angústias e realizações diárias das tantas pessoas com quem convivia no ambiente de trabalho –, arrisco dizer que Carlos Drummond de Andrade também não teria sido o grande cronista e poeta do cotidiano que foi. Se não tivesse amado – e se casado – tantas vezes, Vinicius de Moraes com toda a certeza não teria nos deixado alguns dos mais lindos versos de amor que existem na literatura brasileira.

Foto: da autora.

Bruna Ramos da Fonte é biógrafa, escritora, fotógrafa ensaísta, professora e palestrante. Especialista em Leitura e Produção Textual com Aperfeiçoamento em Psicanálise Clínica, é criadora da sua própria metodologia no campo da Escrita Terapêutica. É autora de diversos títulos, incluindo “Escrita Terapêutica: um caminho para a cura interior” (Letramento, 2021) e as biografias de Sidney Magal e Roberto Menescal. Visite: www.brfonte.com