COLOCA NA RODA - Como os discursos atuais podem revisitar os monstros do passado e por que não se calar.

Há um ditado popular que diz ‘quem cala, consente’. Por isso, já vou pedindo desculpas aos que ficam em cima do muro ou que pensam que política, ética e posicionamento não são passíveis de discussão. Nesta coluna, minha função é colocar na roda (e você não precisa concordar).

Holocausto. I e II Guerra Mundial. Apartheid. Não é preciso ter vivido na época em que esses fatos ocorreram para entender a dimensão histórica, social, política e humanitária que cada um representa. Quem estudou história, deve lembrar que pessoas morreram, atrocidades foram realizadas e coisas horríveis foram justificadas por causa de discursos carregados de ‘razões’ (expressão bem irônica) embasadas em preconceito, ganância, racismo e autoritarismo extremo.

Como é que tanta coisa ruim aconteceu ao longo da história?

Quem em sã consciência apoiou a segregação de pessoas, a construção de campos de concentração, a morte, a fome, a perseguição e tantas outras atitudes abomináveis? Infelizmente, em pleno 2020, vivemos um momento em que é possível identificar pessoas que possuem afinidade com ‘valores’ que se aproximam, de certa forma, de tais atitudes do passado.

‘Aqueles que não podem lembrar do passado, estão condenados a repeti-lo. Assim disse o filósofo espanhol George Santayana. Considerando o momento, essa frase continua muito atual.

Estamos em uma pandemia que escancarou não só nossa fragilidade enquanto seres humanos, como também destacou a crise de valores, o egoísmo, a falta de responsabilidade de tantos que deveriam trazer soluções e a importância (e, infelizmente, a desvalorização) dos profissionais da saúde e dos cientistas que são tão vitais em nosso mundo.

O que o comportamento de quem apoiou ideologias extremistas tem em comum com pessoas que hoje insultam a população, os enfermeiros, médicos, a imprensa e as famílias que estão perdendo seus entes queridos por conta da Covid-19?

O contexto histórico é diferente. Mas, infelizmente, há traços comportamentais que dizem muito sobre a falta de caráter e humanidade de quem contribui para as mazelas sociais e assume posicionamentos vergonhosos.

Para ficar mais clara essa semelhança, veja três momentos que repercutiram na imprensa recentemente e tire suas conclusões.

Brasília, 28 de abril de 2020: – E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre… disse o presidente Jair Bolsonaro à imprensa ao ser questionado sobre o número de mortes causadas pelo coronavírus no Brasil.

Neste dia, o registro era de pouco mais de 5 mil óbitos (dados do Ministério da Saúde já revelam mais de 6 mil casos fatais). Como é que uma autoridade se posiciona assim enquanto há tantos presidentes no cenário mundial que estão encarando esse momento de forma humana e sensível (o mínimo esperado)?

“E daí?”: o que os registros em vídeo, texto e outras mídias que são documentos históricos vão dizer sobre tal atitude daqui a alguns anos?

Quem não assume sua responsabilidade perante os mortos de seu próprio país não pode ser levado a sério.

A responsabilidade não é somente sobre o respeito e empatia que a população merece. É sobre um cargo do poder executivo que tem autoridade máxima para concentrar todos os esforços em prol dos profissionais da saúde que estão na linha de frente, dos estão perdendo seus empregos e de quem sustenta esse país nas costas, trabalhando faça Sol ou faça chuva.

Não é função da imprensa calar uma fala como essa, muito menos consentir. É papel do jornalismo – e dos veículos de comunicação –, questionar, cobrar e pressionar, sim.

A imparcialidade (tão defendida no exercício da profissão), diante de uma tragédia como essa e uma declaração com este nível, corre o risco de tornar-se uma evidência da má fé intelectual e, sem dúvidas, fere o que o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. O artigo XI do capítulo II do Código destaca que o papel do jornalista é: ‘Defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e das minorias’.

Ou seja, não questionar uma resposta vaga, cruel e debochada como “E daí?” em resposta às ações de contingência à pandemia e apoio às pessoas que perderam filhos, pais, esposas, avós, mães e outros familiares com coronavírus não é digno da imprensa.

Curitiba, 21 de abril de 2020: Uma empresária curitibana gravou um vídeo que viralizou nas redes sociais sugerindo que os adeptos ao isolamento social (recomendação da Organização Mundial da Saúde) tivessem as portas de suas casas identificadas com uma fita vermelha, além de não ter acesso aos serviços básicos como saúde e alimentação (direitos que, segundo a empresária, deveriam se limitar aos que continuam trabalhando para fazer a economia girar).

houve manifestação, em resposta ao episódio, tanto da imprensa quanto do Museu do Holocausto de Curitiba – instituição que trouxe à tona a importância de não esquecer episódios tristes da história e de não compactuar para que pensamentos assim se perpetuam em nossa sociedade.

A seguir, um trecho da nota emitida pela instituição: ”O Museu do Holocausto de Curitiba, como instituição preocupada com a construção de uma memória justa e contemporânea do genocídio, tem convicção de que não é necessário que haja uma citação explícita sobre este período nefasto para que nos posicionemos. A ideologia nazista, lamentavelmente, pode sobreviver mesmo sem seus símbolos tradicionais, mas por meio de analogias implícitas. No caso, hoje, a respeito do vídeo postado pela empresária Cristiane Deyse Oppitz, que está circulando na internet. Sem nos aprofundarmos na referência deturpada da narrativa bíblica do êxodo do Egito, quais seriam os pontos abomináveis e que remetem ao nazismo dentro dessa, no mínimo infeliz, fala? Em primeiro lugar, a identificação de pessoas que ela enxerga como inimigos sociais – os quais, vale frisar, ao optar pelo isolamento social em razão da pandemia de Covid-19, estão seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). O uso de ‘fitas vermelhas’ ou afins para identificar cidadãos contrários ao seu ponto de vista, independente do contexto, guarda similaridade com os decretos que impunham a identificação dos judeus por meio de insígnias. Marcar o outro, quem quer que ele seja, é uma forma de estigmatizar, humilhar e retirar da sociedade (e, consequentemente, de seus direitos associados) a estas pessoas. No caso dos decretos nazistas, foi um passo importante que levou ao posterior extermínio da população judaica.
Em segundo lugar, aprofundando em seu discurso, destacamos a questão do trabalho e da contribuição econômica como fator determinante de quem é o melhor cidadão. A lógica de que os direitos estariam condicionados ao trabalho faz parte de uma concepção segregacionista, que atingiu, nos primórdios nazistas, as pessoas com deficiência. O Aktion T4, programa de eugenia da Alemanha nazista em que médicos assassinaram centenas de pessoas consideradas por eles como ‘incuravelmente doentes’, teve como uma de suas ‘justificativas’ a noção de que a sociedade não deveria gastar recursos com aqueles que não contribuem economicamente para ela”. […]

Precisamos explanar mais alguma coisa?

Brasília, 01 de maio de 2020: No Dia Mundial do Trabalho, profissionais da saúde fizeram um protesto simbólico em frente ao Palácio do Planalto para homenagear as vítimas do coronavírus e pedir por melhores condições de trabalho.

Durante o ato, ‘patriotas’ que se identificaram como apoiadores do governo atual, atacaram os manifestantes com um discurso totalmente desconexo e desrespeitoso (Assista: https://bit.ly/protestoprofissionaisdasaude).

Diante desses três episódios, o que podemos aprender sobre discursos carregados de falta de educação, bom senso e respeito?

No fim das contas, sendo jornalista, enfermeira(o), médica(o), profissional de limpeza pública ou seja lá qual for a profissão, de esquerda, direita ou centro, é preciso entender, questionar e repudiar falas que trazem à tona os piores sentimentos e significados.

De que lado você está?

Essa reflexão não tem o objetivo de rotular as pessoas, mas sim, de demonstrar que todos nós, dentro de nossas singularidades, valores, profissões e conhecimentos, temos o dever de não compactuar com o que destrói a vida.

As palavras podem destruir. As palavras podem deslegitimar uma causa pelo bem comum. As expressões podem revisitar (e reavivar) monstros históricos que causaram tanta dor – e definitivamente não é disso que precisamos agora.

E você, o que pensa sobre? #ColocaNaRoda!

OBS.: O ponto de vista da coluna não reflete, necessariamente, a visão do Observatório da Comunicação Institucional.

Imagem: Sides Imagery / Pexels.

Bruna Martins Oliveira é jornalista formada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, onde foi autora da monografia ‘O Transtorno Bipolar na perspectiva da mídia: uma análise do Paraná no Ar’. Atualmente é estudante do curso de pós-graduação em Marketing Digital: Negócios e Estratégias, pela PUC MINAS e trabalha como redatora e jornalista em alguns projetos. Tem experiência no jornalismo de rádio (Grupo Lumen de Comunicação) e trabalhou como repórter freelancer na Secretaria do Esporte e do Turismo do Paraná e no jornal Gazeta do Povo.