COLOCA NA RODA - Como a cobertura de tragédias e as formas de contá-las fala sobre nós enquanto sociedade que produz e compartilha notícias?

2019 começou de forma pesada no Brasil. Há quem diga, inclusive, que não houve um só dia sem pelo menos uma notícia ruim. De fato, parece que estamos em um círculo repetitivo de tragédias humanas, políticas e sociais de todos os lados. E acompanhar essas coberturas pela timeline das redes sociais, pelos jornais online ou pela tevê, tem sido algo doloroso e, sem dúvidas, traz a oportunidade de refletirmos sobre o porquê disso.

Entre tantas notícias, acredito que o rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, foi uma das mais chocantes. Quase dois meses depois do dia 25 de janeiro, temos a confirmação do Corpo de Bombeiros do estado que 206 pessoas foram mortas e mais 100 seguem seguem desaparecidas. Além da perda humana e da devastação ambiental imensa, a negligência dos responsáveis somada a situações semelhantes – e vividas anteriormente (não esqueçamos de Mariana) – torna a responsabilidade jornalística ainda maior envolvendo essa temática. Mas como falar sobre as tragédias respeitando a história das pessoas? É um desafio. E nem sempre isso foi cumprido, principalmente em momentos nos quais vários veículos conversaram em paralelo com familiares dessas pessoas.

A onda de feminicídios no país também é outro tema que está sendo repercutido nos veículos de comunicação. De acordo com uma pesquisa da USP, foram mais de 100 casos até agora – mas dá para considerar um número maior, já que nem todo caso vira notícia. Sobre os que viram: por um lado, percebe-se a problematização maior dessa questão em redes sociais. Mas por outro, a forma como são feitas as coberturas é bem questionável.

Um exemplo recente é o caso da jovem que foi estuprada pelo cunhado e morta pelo namorado de forma brutal. O R7 foi um portal que cobriu esse assunto. A manchete usada foi ‘Jovem tem 80% do corpo queimado após ser flagrada na cama com o cunhado’ (http://cartaodevisita.r7.com/conteudo/24894/jovem-tem-80-do-corpo-queimado-ap-s-ser-flagrada-na-cama-com-o-cunhado-suspeito-de-estupr-la). Diante dessa abordagem, é importante pensar no termo ‘flagrada’. Afinal, a vítima – neste caso – é colocada como agente de um ato que ela não consentiu. E o ‘flagrante’ acaba atribuindo a culpa do crime a ela.

Por fim, há somente uma semana, o ataque à escola de Suzano, em São Paulo, foi destaque nos jornais do país inteiro. Na tragédia, 10 crianças morreram, 11 ficaram feridas e muitas pessoas traumatizadas. Diante da tristeza das famílias e do choque com a situação, algumas coisas chamaram a atenção na cobertura da grande mídia sobre o tema. Além do foco nos atiradores responsáveis pelo caso (houve muitas matérias tratando da vida dessas pessoas, sendo uma delas menor de idade, nas suas motivações e no próprio suicídio dos dois envolvidos no caso), a repercussão de fotos e vídeos das cenas de violência foi bastante explícita. O sangue, a situação das crianças, o pânico geral foram coisas muito marcantes na cobertura jornalística que repercutiu nas redes sociais das mais variadas formas. Isso tudo sem pensar em uma coisa importante: eram crianças.

Para desconstruir esse tipo de narrativa, a Safernet Brasil fez uma postagem no Facebook com a hashtag #EscolhaContarAHistóriaDosHeróis (https://bit.ly/2FlYBzK). A postagem viralizou por propor uma análise do outro lado da tragédia e a necessidade de humanizar as vítimas, sem desrespeitá-las em um momento tão difícil.

Em resumo, são três casos de tragédias em contextos diferentes. Mas há um fator que deve ser observado em todas: a forma como essas tragédias são noticiadas e repercutidas pelo público. Em um momento no qual tudo é imediato e descartável, as percepções que se criam sobre as tragédias a partir do acesso e compartilhamento de informações são questionáveis. Como pontua o sociólogo Zigmunt Bauman,  ‘Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar’. Ao conectar isto com a divulgação das notícias ruins, há um problema a ser pensado: a vida e a morte das pessoas são divulgadas no calor do momento, muitas vezes sem a humanização devida. E nessa onda de fotos, vídeos e formas de construir personagens, às vezes a impressão que fica é que vivemos um ‘fast food’ de notícias. As pessoas se tornam números, o sangue vira close na TV, as lágrimas são motivo para captar a audiência e há pouca reflexão sobre tudo, já que se torna algo normal noticiar tragédias.

Diante disso, onde fica a preservação e o respeito às vítimas? Como informar sem minimizar uma tragédia, mas ao mesmo tempo não fazer um show de horrores? Em um cenário tão negativo, há quem tente ‘desligar’ da realidade e até prefira ficar desinformado. Seja por textos, imagens, vídeos ou outras formas de conteúdo, há vários jeitos de abordar uma notícia ruim. E é inevitável que tudo isso mexa com a emoção das pessoas e com a representação que elas possam ter sobre o tema. Afinal, ao ler, ouvir e assistir uma tragédia, nós podemos ter várias interpretações sobre o que é criminalidade, o que é violência, o que é crime e quais fatores rondam todas essas questões.

Muito além dos veículos tradicionais, a internet potencializa o acesso à informação, com todo tipo de qualidade. Em meio à conexão das pessoas, 24 horas por dia, em qualquer momento e lugar, a proliferação de notícias é veloz (sejam elas verdadeiras, rasas, aprofundadas, falsas ou sensacionalistas). Por isso, fazer um filtro do que produz, ouve, lê e compartilha é fundamental. Afinal, toda informação causa impacto. Quando se trata de uma tragédia então, a responsabilidade de replicar essas notícias em uma velocidade incontrolável pode causar vários desdobramentos. Em um contexto geral, no qual as notícias falsas, também conhecidas pelo termo ‘fake news’, ganham em espaço e compartilhamento (62% dos brasileiros já acreditaram em alguma notícia falsa, segundo uma pesquisa do Instituto Ipsos), refletir sobre o acesso à informação de qualidade e ética é essencial.

Será que a cobertura jornalística está sendo coerente? O que o jornalismo têm feito sobre isso? Os jornais fazem coberturas respeitando os limites éticos? A descrença no jornalismo contribui para o compartilhamento de conteúdo ruim, falso e sensacionalista?

Não existe uma resposta pronta para todas essas inquietações. Mas, fato é que a abordagem das notícias, de forma ética e humana faz a diferença (pelo menos em minha visão do que seja jornalismo). Ao conversar com uma amiga sobre esse assunto, envolvendo esse mar de tragédias e todo o mal-estar ocasionado por se saber das coisas, cheguei a algumas conclusões. Nós fomos ensinados – nos bancos da universidade – que o jornalismo factual é feito na correria… Que ‘furo ”jornalístico’ é uma conquista (tal termo faz referência à notícia dada em primeira mão) para o veículo e para o profissional, e que a imparcialidade jornalística é importante. Mas nem sempre fomos ensinados a perceber os limites humanos, emocionais e éticos que cercam essas questões quando o assunto é a cobertura de tragédias.

Afinal, quais são os limites éticos para se conseguir uma informação (a qualquer custo e em primeira mão)? Será que é necessário mesmo falar com familiares de vítimas em uma situação de tragédia apenas para se obter um personagem? Ao noticiar um caso de violência contra a mulher, escolher dar voz (mesmo que indiretamente) a quem cometeu o crime é certo? Divulgar as fotos das crianças da tragédia de Suzano é uma coisa legal?

Diante de situações extremas é impossível que os sentimentos não fiquem à flor da pele. Mas transformar a dor do outro em audiência, sensacionalismo ou desinformação é algo muito desonesto e abominável. Além de reforçar preconceitos, representações incorretas e violar os direitos humanos, uma cobertura jornalística irresponsável viola o compromisso ético com a profissão. Não é à toa que essas questões estão previstas no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, elaborado pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). No artigo II do capítulo que trata da responsabilidade profissional do jornalista, há uma recomendação específica sobre a cobertura das notícias ruins. O trecho diz que o jornalista não pode divulgar informações ‘de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes’. (https://fenaj.org.br/wp-content/uploads/2014/06/04-codigo_de_etica_dos_jornalistas_brasileiros.pdf).

Quando o jornalismo falha nessas questões, há uma perda maior da credibilidade no papel da imprensa. E se a imprensa perde a credibilidade, as pessoas podem buscar outros canais. E assim como esses canais podem ser os veículos independentes e aprofundados – como os mapeados pela Agência Pública de jornalismo investigativo (https://apublica.org/mapa-do-jornalismo/), isto também pode dar margem ao acesso e replicação de conteúdos falsos e duvidosos originados em portais tendenciosos (e tão maléficos quanto a cobertura jornalística inadequada). Ou seja, mais uma vez é preciso refletir: como essas tragédias foram noticiadas? Como estão sendo noticiadas? O que o jornalismo precisa fazer para se diferenciar em relação aos conteúdos falsos e sensacionalistas que vemos circulando por aí?

A tarefa é árdua. O caminho é longo e não dá para atribuir a culpa de tudo isso a um lado só. Jornais tradicionais precisam tratar com mais seriedade e carinho os princípios que movem o jornalismo, seja ao analisar o interesse público ou ao abordar um tema delicado de forma diversa, com fontes de credibilidade e cuidados que não banalizem a situação.

O jornalismo não deveria ser uma competição na qual os veículos disputam somente a audiência e a velocidade das informações sem pensar no impacto das coberturas.

É preciso informar, sim, e não é errado ter uma cobertura factual (há possibilidades de aprofundar este tema depois). Mas é preciso ter empatia, mesmo em momentos onde tudo é tão urgente. A palavra falada ou escrita constrói, transforma, mas pode também matar um pouco da nossa humanidade. O mesmo acontece com a escolha de uma imagem ou de um vídeo. Tais escolhas vão marcar para sempre a representação de um tema.

É preciso encontrar estratégias que façam as pessoas repensarem sobre como estão consumindo informação (e replicando, muitas vezes sem verificar a veracidade ou sem se preocupar com o impacto disso). Mas para esse tipo de reflexão um dos desafios é fazer uma imprensa com mais credibilidade. A imprensa por sua vez precisa ser mais autocrítica. Resgatar o que foi ensinado nas salas de aula sobre a função social do jornalismo, sobre ética, postura profissional e sobre diversidade é importante.

Não é honesto abordar temas como violência doméstica e feminicídio sem entender a complexidade dessas questões e ouvir fontes que acreditam que violência contra mulher não é um problema. Não tem como tratar um crime ambiental sob a ótica de quem tem mais poder e defende o desenvolvimento mas não assume a responsabilidade social e a negligência diante do fato. Não tem como tratar de violência sem entender a complexidade dessas situações. É preciso entender as questões sociais, estruturais, psicológicas e familiares que envolvem a criminalidade. É complicado também engolir o discurso que armamento em posse dos profissionais da educação evitaria uma tragédia como a de Suzano.

É preciso que as iniciativas fora do eixo da rotina sejam mais reconhecidas e debatidas para que essas informações com maior profundidade também cheguem ‘melhor’ ao público. É preciso que nós, enquanto sociedade, repensemos as relações sociais, as questões de afeto, as formas de falar e ouvir. Temos que repensar também a nossa responsabilidade tanto em produzir as notícias como em passá-las adiante. Afinal, o equívoco existe não só na hora de criar algo sensacionalista, mas também de reproduzir esse discurso.

É por isso que precisamos refletir juntos em rede. Temos que colocar na roda todas essas inquietações. Na roda dos amigos, na roda universitária, na roda que se cria nas redes sociais ou em outros espaços como essa coluna.