CIDADE E PSICANÁLISE - "Delirious City": a saúde mental em crise. Por Mariana Anconi.

Quais afetos e sentimentos encontramos nas ruas? Ódio? Amor? Agressividade? Raiva? Talvez todos eles, mas em determinados momentos há uma predominância de alguns sobre outros. Lembro que logo quando mudei para Nova York, uma das primeiras coisas que mais me chamou atenção nas ruas foi a grande quantidade de pessoas em surto delirante.

As ruas da cidade são espaços que condensam muitos fenômenos urbanos. O que surge na cena do cotidiano reverbera entre o espaço público e privado. Entre o eu e o outro. Entre o particular e o social. A cidade é o que acontece nesse “entre” campos, o que irrompe nas lacunas.

No mês passado, fui algumas vezes ao parque para descansar ou tentar escrever. Em uma dessas vezes, vivi uma cena repleta de mal-estar. Nesse dia, procurei um banco e sentei com o computador no colo. Enquanto digitava algumas palavras para um outro texto, um homem passou por mim pedalando em sua bicicleta.

Depois de alguns minutos levantei a cabeça acima da tela do computador, quando por segundos meu olhar encontrou o dele. Voltei a olhar para o computador. Neste instante, comecei a ouvir alguns gritos. A princípio, fiquei na dúvida se era comigo, até que o homem veio caminhando em minha direção, decidido, como se me conhecesse e viesse prestar contas de algo comigo. O que eu fiz a este homem?

Parou sua bicicleta em minha frente, sem máscara e, esbravejando, perguntou: Você quer morrer? Fechei o computador e levantei do banco num impulso de me proteger. Diante de sua raiva fiquei com a sensação de que nenhuma palavra cabia ali, que nada que eu dissesse transformaria aquilo em um diálogo. Enquanto eu me preparava para ir embora, ele continuou seus insultos e esbarrou em uma pessoa que passava logo atrás e também passou a xingá-la. Saí de lá sem olhar para trás. Caminhei para longe em meio a tropeços, tentando dar um sentido para a cena.

Essa não é a primeira vez e nem vai ser a última que alguém vai ser agredido na rua (física ou verbalmente). Porém, o que dessa cena revela sobre a saúde mental da cidade?

Cada cidade enfrenta seus dilemas, crises, contradições e mal-estares. A estratégia adotada para lidar com tudo isso produz efeitos diversos, dos mais positivos aos mais violentos. Em Nova York, existe um tipo de problema recorrente que os gestores da cidade precisam lidar: a agressividade nas ruas.

Notemos que, neste caso, a agressividade tem uma especificidade que está atrelada a questões de saúde mental nesse território, pois constantemente pessoas agridem outras na rua de forma aleatória, aparentemente. Cada vez mais escutamos relatos e notícias sobre ataques em estações de metrô, ruas e parques públicos (1).

Esse outro que ataca: Quem é ele? O que ele quer? É preciso ler a violência para além do fenômeno. É preciso ler sua estrutura no contexto sócio-político.

A pergunta que me ocorreu sobre “O que eu fiz a este homem?” não ajuda necessariamente a construir hipóteses neste caso, pois apesar de sua ira ter sido direcionada a mim, é importante ler a cena no espaço público sem individualizá-la, ou seja, sem despolitizá-la.

A violência se estrutura de variadas formas na sociedade. Se, no Brasil, a insegurança em andar nas ruas está, na maioria do casos, no fato de poder ser roubado ou furtado, aqui, a insegurança passa pela agressão física e verbal de forma aleatória. Na pandemia, esses ataques aumentaram, assim como o número de pessoas em situação de rua. Enquanto muitos conseguiram ficar em casa, outros tiveram que fazer da rua suas casas. Todo esse cenário hostil nas ruas recoloca a questão: Qual o lugar do sofrimento psíquico na cidade?

Hoje, há um não-lugar para o sofrimento psíquico. Há um não-saber fazer com isso, ou o que se sabe carrega equívocos. As estratégias, por vezes, parecem que são à base da tentativa e erro. As politicas públicas de um território e as narrativas adotadas revelam a maneira como os gestores públicos entendem, por exemplo, a saúde mental e o sofrimento psíquico.

No livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico” (2), os autores afirmam: “A forma como uma cultura escolhe nomear e narrativizar o sofrimento psíquico, a maneira como ele é incluído ou excluído por determinados discursos, o modo como ele reconhece sujeitos para certas demandas e estados informulados de mal-estar possuem valor etiológico, tanto quanto as determinações orgânicas”.

Como estratégia de acolhimento em saúde mental durante a pandemia, foram divulgados números de telefone e site para que os habitantes de Nova York entrassem em contato para receberem atendimento. Uma estratégia importante, mas com grandes limitações em relação ao seu público-alvo. Quem este tipo de serviço consegue alcançar? Com certeza, não os que estão nas ruas.

Foi lançado um programa chamado B-HEARD – da prefeitura da cidade – que tem tentado dar conta dessa questão que envolve o acesso à saúde mental. O programa tem sofrido várias críticas, inclusive pelo atraso das iniciativas. A ideia é que seja treinado um grande número de profissionais (social workers) para atender as demandas da população em saúde mental. O problema é justamente a falta desses profissionais – que ainda não foram contratados (3).

O contexto da cena no parque é a cidade de Nova York, curiosamente chamada por alguns de delirious city, bem representada no delírio daqueles que circulam nas ruas uma oferta escassa de acolhimento. Neste território, as narrativas construídas em torno da saúde mental estão ainda atreladas a punição e a vigilância. Um exemplo disso está no fato de que quem atende as chamadas de urgência ainda é a polícia. Enquanto o programa B-HEARD não avançar policiais continuarão atendendo as demandas.

Assim, os casos que trazem questões de sofrimento psíquico ainda são tratados como “casos de polícia”. A polícia vem como resposta ao buraco que existe no sistema de acolhimento aos que estão em sofrimento psíquico. Em muitos casos, a estratégia continua sendo a violência e a punição, sem que haja uma leitura mais complexa e estrutural da questão.

Mas, e nós, habitantes, o que fazemos com isso? Essa pergunta pode ser tratada em um texto à parte. No entanto, deixo aqui a pista sobre a crítica à ideia do sofrimento psíquico individualizado. Políticas públicas em saúde mental têm que ser discutidas e criticadas coletivamente pela população.

A cidade no tempo da pandemia se tornou mais agressiva, ameaçadora e dura. Ficou escancarado o que já estava aí: não há lugar para o acolhimento do sofrimento de uma parcela da população, especialmente negros, latinos e pobres.

A cena no parque revelou que além da crise na saúde mental da cidade, existe uma crise na noção de coletividade. Enquanto a agressividade se manifesta nas ruas, os que estão por perto fingem não ver. Parece que quanto maior a cidade mais individualizados são os habitantes e menor o senso de comunidade.

“Você quer morrer?” É uma pergunta que diz muito mais sobre quem está perguntando: estes que estão em sofrimento e que estão falando da morte; estes que se sentem ameaçados todos os dias ao terem que enfrentar um sistema de saúde que os deixa de fora. Nesse sentido, perguntar se o outro quer morrer é um jeito (ruim) de continuar vivo.

(1) NYPost news – https://nypost.com/2020/11/16/letting-mentally-ill-dangers-walk-streets-a-way-de-blasio-fails-nyc/

(2) Vladimir Safatle, Nelson da Silva Junior, Christian Dunker (Orgs). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. São Paulo: Ed. Autentica, 2021.

(3) NY Post news – https://nypost.com/2021/02/20/hiring-delays-push-back-nyc-program-to-help-the-mentally-ill/

Mariana Anconi é psicóloga e psicanalista. Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Psicopatologia e Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP). Idealizadora do projeto itinerante ‘Diálogos na Cidade: Arquitetura, Cultura e Psicanálise’. Mora e trabalha em Nova York – EUA.