Carta-resposta. Por Juliana Fernandes Gontijo.

No início da Guerra na Ucrânia, em 2022, um menino de 10 anos escreveu uma carta e deixou sobre um canhão naquele país.

Carta-resposta

Após longa procura sem absolutamente retorno algum, um ex-combatente russo decide publicar a seguinte carta nas redes sociais em resposta àquela criança que lhe escrevera anteriormente:

Querido Aleksei Rusla,

Meu nome é Nikolai Andrei, ex-soldado combatente da guerra Rússia X Ucrânia. Espero, do fundo do meu coração, que esteja tudo bem com você e todos os seus amigos na Itália, mesmo com as péssimas lembranças da guerra no seu país, a Ucrânia. Um ano se passou desde que você viajou a pé até a Polônia a fim de deixar sua terra natal com as outras crianças do orfanato, não é verdade? O mundo todo imaginava que essa guerra acabaria em poucos dias e lá se vai um ano!

Acredito que foi muito triste esta viagem, sem nenhum conforto, mas foi um grande recomeço. Orei muito a Deus para que todos vocês sobrevivessem ao frio e à fome, para chegarem à Itália com saúde, fé e esperança de uma vida melhor.

Eu sei que você não me conhece, mas fui eu que encontrei a sua carta sobre o tanque de guerra no qual eu combatia. Sim, eu combatia. Hoje, sou ex-combatente.

Nunca pensei que eu realmente pudesse fazer parte de uma guerra. Entrei para o Exército Russo com o ideal de defender o meu país, só isso. No entanto, não foi o que aconteceu! Eu falo em guerra sem medo algum de ser preso na Rússia.

Você disse que viu muitos horrores como a morte de seus amigos, Dimitri e Iuri; toda sua cidade quebrada. Não sei se você acredita, mas eles viraram muitas estrelas que brilham no céu, assim como os meus colegas soldados. Infelizmente, eu perdi quase 50 deles, todos vizinhos ou colegas de equipe. Eu sabia o nome de cada um deles, dos filhos, se eram casados ou não, ou até conhecia namorados e namoradas.

Todos os dias, eu tenho pesadelos com as bombas, tanques de guerra, aviões com míssil, pessoas mortas bem perto de mim. Eu passei fome, frio, tinha saudade de uma cama quentinha que eu pudesse dormir um sono tranquilo. Cheguei a pedir comida numa estrada perto de Kiev. Infelizmente joguei bombas e precisei atirar, passar o tanque por cima de muita coisa. Como você é um menino esperto e inteligente, já sabe o que aconteceu. Por isso, eu te peço, Rusla! Perdoe esse pobre ex-soldado combatente.

Os meus pais moravam na Ucrânia mais ao norte e também não sobreviveram a um ataque. Tentaram ir para um bunker, mas não deu tempo. Chorei muito, porque eu não consegui salvá-los e nem me despedir deles. Somente fiquei sabendo da morte ao sair da UTI. Sim, infelizmente você leu isso mesmo.

Na região perto de Kiev, uma nova bomba atingiu a base onde estávamos eu e mais 20 soldados. Ninguém conseguiu se esconder nos escombros de um shopping, apenas eu sobrevivi. Fiquei desacordado por várias horas, porque perdi muito sangue. Sim, meu braço esquerdo e a perna direita foram dilacerados. Como o socorro demorou a chegar, eu tive uma infecção nesses membros, por isso foi preciso amputá-los. Foram 3 meses no hospital, 20 dias na UTI e agora um longo período de recuperação em casa. Às vezes, eu sinto como se eu tivesse dores nos membros que não existem mais. Pode isso?

No dia em que sofremos o ataque, eu estava disposto a entregar os meus documentos ao comandante do meu batalhão no fim da tarde. Eu iria retornar ao meu país, mesmo correndo o risco de ser preso, por abandonar o posto de trabalho. A sua carta me fez tentar abandonar a guerra! Infelizmente não deu tempo.

Agora estou na casa da minha namorada, Natalya, em Sóchi. Como eu amo essa garota. Nós vamos nos casar um dia, vamos ficar noivos em breve. Quero terminar a minha recuperação e futuramente trabalhar com reabilitação física de ex-combatentes. Um dia, pretendo participar de alguma modalidade das paralimpíadas. Assim você poderá me ver na TV.

Eu cheguei a ganhar uma medalha de honra pelo combate na guerra. Do que ela me vale agora? Nada! Doei para um orfanato, porque eu me lembrei de você e seus amigos. Esse gesto foi o mea culpa de um soldado que não sabia o que estava fazendo numa guerra. Eu, que amo tanto as pessoas (querendo muito o bem de todas elas), combatia por pessoas (governantes) que se odeiam, mas não se matam!

Você me perguntou se eu conhecia quem teve a infeliz ideia de começar aquela invasão, não foi? Pessoalmente, eu não o conheço. Eu penso ser uma pessoa sem amor no coração pois, se tivesse tal sentimento, jamais teria feito tantos milhões de pessoas sofrerem como nós dois.

Esta carta é um pedido de perdão, Aleksei Rusla. Eu não sabia que poderia ser tão triste fazer tanta gente passar por isso. Um egoísmo grande como esse pela dominação que sabemos, na prática, nunca vai existir.

A guerra arrasou não somente o seu país, mas o meu também. Milhares de pessoas não concordam com tamanha destruição de vidas. Como eu fui recrutado pelo Exército Russo e obrigado a combater, infelizmente, eu fui um dos responsáveis por este desastre. Era o meu trabalho que, moralmente, nunca valeu de nada! Hoje, estou também sem meus país, assim como você, tentando reconstruir a minha vida de mutilado ao lado da minha amada Natalya.

Saiba que depois que eu encontrei a sua triste e verdadeira carta, eu quis mudar de vida, mas era tarde demais. Se eu pudesse voltar no tempo, teria feito Medicina para salvar a vida de muita gente como você tanto quer. Era esse o desejo dos meus finados pais que também viraram estrelas.

Se algum dia eu puder conhecer você, eu quero muito ser seu amigo e nós bem que poderíamos lutar pela paz mundial juntos! Eu penso que seria uma ótima e feliz ideia, não é verdade?

Eu peço encarecidamente, Aleksei Rusla, perdoe esse pobre soldado em recuperação que está pagando um preço alto por tamanhos atos impensados.

Como um amor incondicional de pai para filho que tenho por você, eu deixo o meu abraço afetuoso e um eterno pedido de desculpas,

Nikolai Andrei.

Esta é outra carta fictícia que muito poderia ser verdade. Portanto, se encontrar um destes personagens pelo mundo afora, nada mais é que uma feliz coincidência do destino.

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.