Quando falamos nas etapas e atividades da realização de um projeto cultural, a prestação de contas, normalmente, aparece como uma atividade específica na pós-produção; depois da realização de todas as atividades da pré-produção e produção. Ainda não é comum, mas já se pode encontrar gestores de projetos que entendem a prestação de contas como processo de acompanhamento e checagem de conformidades, presente em todas as atividades de um projeto.
A prestação de contas como um processo na realização de projetos que começa na concepção, incluindo o planejamento, e passa por toda a pré-produção e produção, alcançando também as atividades da pós-produção. Este processo formalmente terminaria com a entrega dos relatórios de finalização do projeto, na pós-produção; não acontecendo, somente, neste momento da realização e gestão dos projetos. E isto independente da dimensão ou perfil do projeto, OK?
Mas, esta ainda é uma percepção de curto prazo da prestação de contas. Pode ser mais prudente entender que a prestação de contas está efetivamente concluída com o recebimento da comunicação de sua avaliação finalizada com aprovação, ou parecer que confirme a conclusão com outro status de avaliação.
Mas, por quê?
Desafios ou mesmo problemas que poderiam vir a inviabilizar ou dificultar a conclusão de projetos, de acordo com os parâmetros determinados por normas locais ou nacionais e contratos de patrocínio, são amenizados ou não existiriam com um planejamento que considerasse a viabilidade de execução de atividades previstas. Entender a realização de um projeto a partir das interconexões das atividades e etapas e das necessidades de planos alternativos e previsões que permitam uma gestão flexível e dentro da conformidade faz parte da prestação de contas.
Por exemplo, dimensionar tipos de contratação de pessoal considerando todos os impostos e benefícios devidos (respeitando especificidades de categorias e seus acordos coletivos, por exemplo), avaliar criteriosamente carga horária e quantidade de material, ter estimativas de preços atualizadas (buscando cotações que permitam estimar valores mais próximos da realidade do momento da execução do projeto, por exemplo), entre outros. Imprevistos podem acontecer. Mas, bons gestores conhecem seus projetos e podem usar o momento do planejamento para se basear em referenciais reais para a estruturação dos planos que o levarão mais objetivamente ao sucesso com suas realizações.
Compreender as dinâmicas dos objetivos dos projetos, das entregas contratadas e previstas e das contratações necessárias, e prever e aprovisionar recursos materiais, humanos e financeiros adequados é um dos fatores dos mais importantes para um projeto com execução bem sucedida. E tem relação direta com a prestação de contas. Buscar seguir a realização das atividades programadas, considerando as previsões e planos alternativos para os casos de contingências que diante de acontecimentos que fujam ao planejado e aos planos também.
Identificar possibilidades de ajuste de rota e buscar a permissão dos parceiros diretamente relacionados com a comprovação da execução financeira e das entregas materiais e dos objetivos contratados é fundamental. Antes da realização de atividades ou contratação de algo fora do previsto, tendo clareza dos limites permitidos para ajustes com autonomia, é necessário apresentar a situação, preferencialmente, com proposta de adequação alinhada com o legal e o contratado. E isto é parte da prestação de contas.
O acompanhamento da entrega dos produtos e realização dos serviços contratados pelo projeto, buscando garantias em relação à especificação, quantidade e período, é uma parte com atenção fundamental na gestão. E deve ser acompanhada da solicitação e verificação da documentação a prestadores de serviços e fornecedores e recebida com a confirmação da veracidade e conformidade das informações e detalhamentos necessários para atendimento a aspectos gerenciais e fiscais, além dos aspectos técnicos. E isto é prestação de contas.
Após a produção, com a comercialização e distribuição, exibição ou veiculação de produtos e/ou serviços que integrem os objetivos contratados, a coleta e organização dos relatórios com informações sobre a comercialização, distribuição, receitas e repercussão da realização do projeto começa a encaminhar à sua conclusão. Isto também é prestação de contas.
O acompanhar de todas as atividades de cada etapa do projeto, desde a concepção, favorecerá que a entrega da documentação, que compõe a comprovação da materialização da prestação de contas e pode ser feita logo depois da finalização de todas as atividades de cada etapa. Acompanhamento feito, atividades concluídas e entrega da prestação de contas realizada. Ainda é necessário aguardar a aprovação – por patrocinadores e órgãos públicos devidos – para que se tenha a confirmação da conclusão do projeto.
Os contratos com parceiros e normas, às quais a execução dos projetos esteja submetida, são os instrumentos que indicarão os prazos para a conclusão das avaliações das prestações de contas entregues. Dentro deste prazo, solicitações de apresentação ou reapresentação de documentos e esclarecimentos são cabíveis e comuns. Contudo, os passivos de avaliações de prestações de contas de governos em diferentes níveis não são pequenos.
O governo do estado do Rio de Janeiro utilizou a contratação de serviço técnico – de natureza contábil – terceirizado para apoio à análise e acompanhamento de prestações de contas de projetos. Neste serviço, não foram feitas apreciações acerca do juízo de valor, resguardando atividade específica da Administração Pública. E com isso, acabaram com a fila de projetos que aguardavam avaliação de prestações de contas de projetos em 2018. É desejável que a situação tenha se mantido com dinâmica mais célere, a partir daquele momento.
Mesmo com a digitalização de processos recentes de prestação de contas para projetos que utilizem incentivo fiscal federal à cultura ou tenha execução pelo Sistema de Convênios do Governo Federal (SICONV), o passivo de avaliação de projetos no contexto federal ainda é expressivo e registra um histórico de projetos que aguarda parecer final de avaliação de prestação de contas expressivo e excedendo o período legal. Tais solicitações criam constrangimentos e chegam a determinar devoluções de recursos com incidência de multas.
No dia 22 de fevereiro de 2021, a produtora audiovisual Ananã Produções teve a decisão liminar confirmada pela 26a. Vara Federal do Rio de Janeiro, em relação ao projeto de realização do filme Zigurate, executado e totalmente concluído entre 2007 e 2008; mas a prestação de contas rejeitada somente em 2020. O argumento para a rejeição da prestação de contas foi a ausência de documentos financeiros originais não solicitados anteriormente, em qualquer momento. O entendimento da juíza federal, que avaliou o caso e confirmou o pedido de liminar da produtora, anulando a rejeição da resposta da Ancine (Agência Nacional de Cinema, no Brasil), diz que a Agência não pode reprovar um projeto pela não apresentação, hoje, de um documento financeiro de mais de 10 anos atrás, não solicitado em nenhum momento antes.
A decisão do dia 22 anula uma deliberação que impunha a devolução dos recursos utilizados (mais de meio milhão de reais) sob pena de aplicação de multa de 50% do valor, com inscrição da produtora no Cadastro de Inadimplentes (Cadin) e inabilitação por 02 (dois) anos, nas penalidades atribuídas pela Ancine. Com o processo encaminhado ao Tribunal Federal Regional da 2a. Regional para apreciação em segundo grau, podemos dizer que o projeto está finalizado, mas ainda não está concluído.
Reconhecendo que este cenário de resposta aos realizadores (proponentes) com a avaliação das prestações de contas de projetos no país ainda está distante do desejável é reforçada a importância do entendimento da prestação de contas como um processo que perpassa todas as etapas da realização de projetos: da elaboração à aprovação da prestação de contas pelos entes devidos. Esta última, não depende diretamente dos gestores e realizadores de projetos. Contudo, todas as demais estão e precisam ser entendidas com a clareza e objetividade de um processo de confirmação da adesão dos gestores à boas práticas de gerenciais e conformidade, e passíveis de incorporação nas diretrizes de transparência e compliance do negócio, alinhando-se mais facilmente com as diretrizes de patrocinadores e parceiros estratégicos.
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Daniele Dantas é profissional da área de gestão de dados e cultura com experiências em instituições públicas, privadas e do terceiro setor, atuando com artes visuais, teatro, museus e artes integradas nas áreas de planejamento, gestão e produção, prestação de contas e avaliação de projetos, impactos e resultados. É doutoranda na UFRJ / IBICT (Instituto Brasileiro de Informação, Ciência e Tecnologia) com pesquisa em ativos intangíveis e valor em cultura, com mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (IBGE / ENCE) e pesquisa sobre construção e uso de indicadores na gestão cultural e especialização em estatística aplicada (DEMAT/UFRRJ). Sócia fundadora da Axía Inteligência em Negócios Culturais.