ANTEVASIN - Deserto de dados na cultura e o desafio de povoar essa lacuna.

A diferença entre algo existir, ou não, se limita ao fato de termos, ou não, conhecimento do mesmo? E quando falamos em dados ausentes ou faltantes, estamos falando da mesma coisa? Em artigo sobre conjuntos de dados ausentes, no livro “Existência Numérica”, Mimi Onuoha começa se referindo às lacunas de dados em contextos que estariam repletos deles.

Para lidar com dados ausentes (ou faltantes), métodos confiáveis podem ser aplicados, buscando atender a informação que não está ali. Para lidar com os dados que não conhecemos, a busca ativa e colaborativa é um caminho. Processo nada simples e sem garantias efetivas, mas válido e necessário. E em relação aos não existentes? Produzir? Mas quem os “produziremos”?

Na política e gestão cultural, vivemos as três situações: a ausência, o desconhecimento e a inexistência. Mas esta não é uma realidade apenas do segmento cultural. Em medidas diferentes, outros segmentos passam por isso. Em 2020, foi possível reconhecer esta realidade na saúde. Profissionais que trabalham com segurança pública também têm desafios em relação a certos tipos de dado. No contexto tributário, os desafios em ter os dados necessários também produz entraves.

Em 2020, agentes das políticas e gestão cultural presenciaram levantamentos emergenciais realizados que confirmaram, especialmente, as situações de ausência e inexistência de dados importantes e essenciais para a área. Esta realidade nos aproxima do argumento de Onuoha que, ao falar do termo ausente ou faltante, traz um alerta semântico importante que liga esta ponta com a da não existência dos dados. Ela diz que quando se fala em algo que falta ou está ausente subentende-se sua necessidade ou ainda no interesse que exista. Mas também destaca que, por outro lado, o fato de algo não existir não quer dizer que faça falta. E eu aproximo Onuoha da realidade das políticas e gestão culturais reforçando ser necessário ter mais e mais diversos e amplos tipos de dados culturais, ao entender este tipo de dado não existente como dado faltante ou ausente, por uma perspectiva semântica.

Os diferentes tipos de lacunas de dados (faltantes ou inexistentes) desenham o cenário do que chamamos de deserto de dados, que se configura pela não identificação ou registro de dados sobre determinado tema, aspecto, região ou localidade específicos, em geral, mais periféricos em conjuntos de dados conhecidos. Ou, mais especialmente, diz respeito a falta de dados completos e confiáveis em relação a determinados recortes da melhor representação de um universo em análise. Isto significa que algumas histórias não são ou serão retratadas ou contadas, ou ainda levam a interpretações equivocadas, viesadas ou mesmo discriminatórias de certa realidade.

Os desertos de dados trazem ainda outras consequências como avaliações e conclusões pautadas em generalizações sem correspondência com o vivido, decisões pautadas em “retratos” desfocados levando a ponderações incorretas, entre outras dificuldades. Os efeitos podem levar a políticas e investimentos que não alcancem seus objetivos ou não solucionem problemas reais, podem dificultar a identificação de vulnerabilidades reais, manter ou ampliar desigualdades, além de poderem induzir a fundamentação de argumentos falaciosos.

É possível reconhecer desertos de dados no segmento cultural. Mas também poderíamos considerar que a cultura represente um deserto de dados, no contexto geral dos dados de segmentos profissionais e mercados no Brasil. Fontes de dados com melhor cobertura, mais completas, padronizadas, confiáveis, acessíveis e com atualizações mais frequentes são necessárias. É importante e possível começar ou dar seguimento a mudanças. Como?

Durante o 10o. Workshop Anual de Metodologia de Pesquisa, realizado pelo NIC.br, em outubro de 2020, em formato online, Natalia Mazotte, coordenadora do Programa Avançado em Comunicação e Jornalismo do Insper, falou sobre engajamento cívico no combate a desertos de dados. Citou oportunidades de colaboração e mobilização de interessados, envolvidos na construção de outra realidade. Colaboração entre pares para suprir lacunas existentes. Envolvimento de interessados. Reunião de parceiros para atender os interesses de um segmento.

Crowdsourcing e consórcios colaborativos de dados são meios de reunir dados de forma colaborativa e com alcance territorial e temático. Contudo, esforços de manutenção e gestão de longo prazo são importantes. A cultura brasileira viveu experiência de alimentação colaborativa de base de dados sobre com os Mapas Culturais em nível nacional, assim como em alguns estados e municípios. Esta experiência teve experiências semelhantes em outros países, como Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela e Costa Rica, por exemplo.

A experiência nacional, no Brasil, segue online, assim como alguns estados e municípios; mas nem sempre com dados atualizados. Dos países vizinhos, poucos ainda têm suas plataformas disponíveis nos endereços anteriormente conhecidos. Desafios importantes tem relação com a frequência e qualidade da atualização dos dados.

Experiências de crowdsourcing de dados existem em diferentes áreas, como na saúde, com os dados sobre Covid-19; e transporte público, com dados sobre circulação e frequência das frotas, em diferentes cidades brasileiras. Iniciativas da sociedade em favor de interesses coletivos suprindo a ausência ou inexistência de dados sobre temas de interesse.

Para amenizar desafios particulares, você tem os seus dados gerenciais organizados? Seja de seus projetos, instituição ou negócio, você pode começar organizando seus dados, que darão referenciais internos para a gestão. Estes dados podem ainda ajudar a contrabalancear ausências de dados externos e nortear as estratégias na busca de dados mais alinhados aos interesses de seus projetos, instituição ou negócio. Contudo, balanços e compensações com a apropriação e uso de dados próprios não diminuem a importância e necessidade da existência de bases de dados mais completas, padronizadas, confiáveis, acessíveis e com atualizações frequentes de dados sobre o segmento cultural.

Desertos de dados existem e, no segmento cultural, algumas das lacunas reconhecidas são relativas a aspectos importantes, como perfil e distribuição geográfica dos profissionais, em diferentes estados e cidades do país. Diante desta realidade, ações de levantamentos de dados realizadas, em 2020, foram importantes no apoio a políticas e ações em favor de profissionais e do segmento de modo mais amplo.

Para a modificação desta realidade, políticas de dados para o segmento, considerando aspectos relacionados a governança, são essenciais. E, para as lacunas que persistam, dinâmicas colaborativas podem ser adotadas [ou retomadas]. Possibilidades.

Vamos?

Daniele Dantas é profissional da área de gestão de dados e cultura com experiências em instituições públicas, privadas e do terceiro setor, atuando com artes visuais, teatro, museus e artes integradas nas áreas de planejamento, gestão e produção, prestação de contas e avaliação de projetos, impactos e resultados. É doutoranda na UFRJ / IBICT (Instituto Brasileiro de Informação, Ciência e Tecnologia) com pesquisa em ativos intangíveis e valor em cultura, com mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (IBGE / ENCE) e pesquisa sobre construção e uso de indicadores na gestão cultural e especialização em estatística aplicada (DEMAT/UFRRJ). Sócia fundadora da Axía Inteligência em Negócios Culturais.