A melhor chance. Por Juliana Fernandes Gontijo.

Tudo o que Pedro Henrique desejava era estar bem longe do orfanato “Luz do Sol”, pois era a décima vez que ele tentava fugir. E se mandou pela mata adentro. Depois de muito caminhar, chegou ao asfalto e continuou andando sem rumo. Não sabia onde estava. Passava-lhe um filme na cabeça, desde quando começou a ter noção da sua vida com 3 anos. O primeiro par de muletas que ganhou de amigos doadores da instituição. No entanto, já havia 5 anos que ninguém o queria adotar porque lhe faltava uma parte da perna esquerda. Era sempre a mesma fala: “Tadinho dele”.

Estava com 12 anos, mas uma cabeça de adolescente mais velho, mais maduro. Fazia sinal para dezenas de carros, mas ninguém parava. Talvez por medo ou por não querer ter o “trabalho” de lidar com a deficiência de uma pessoa, ainda mais uma criança. Até que um caminhão com toras de madeira parou.

– Como pode, menino, estar sozinho no meio do nada? Para onde vai?

– Não sei, moço. Eu me perdi. Só quero ir ao banheiro, estou com uma dor de barriga danada! É uma caridade, depois te deixo em paz.

E o motorista enchia o garoto de perguntas, mas ele não queria conversa, por medo de ser descoberto. Ao chegar ao posto, agradeceu muito àquele senhor por ter-lhe “salvado” de um “terrível” problema. O homem, que se importava somente com a carga de madeira, foi embora para os confins do norte de Minas Gerais e só deixou de lembrança a poeira da estrada.

O menino voltou do banheiro e continuou ali, “zanzando” no posto de gasolina, até que viu rapidamente pela TV do boteco uma foto sua com os dizeres: “Procura-se Pedro”. Na reportagem, Filomena, dona do orfanato, dizia: “É fácil de achá-lo. Ele não tem parte da perna esquerda e está sem documentos”.

O menino tomou um susto, porém as pessoas não prestavam atenção ao assunto, sorte dele. Pedro Henrique vestiu o capuz da blusa de frio e, como estava de calça comprida, ficou “disfarçada” a falta da perna. Afastou-se do boteco com a ideia de assentar-se perto da estrada e, quem sabe, pegar outra carona, mas já estava anoitecendo e poderia ser perigoso.

Voltou em direção às bombas de gasolina e, um carro – do nada – esbarrou nele. A mulher e, provavelmente o marido, saíram do carro preocupados com o menino de muletas.

– Ei, você está bem? Por que está aqui sozinho? Não está com seus pais? É perigoso ficar aqui, ainda mais com o seu problema de locomoção. Era tanto falatório que Pedro Henrique ficou enrolado:

– Não roubei nada não, só quero uma família, só quero uma chance mínima que seja. O casal ficou atônito. Chamou o menino para dentro do carro e assim poderiam conversar melhor. E ele foi, não tinha o que perder só com uma conversa.

O casal eram Maria Clara e Pedro Paulo. Coincidentemente, o nome do homem era parecido com o dele. A mulher insistiu que devia dar um dinheiro ao menino para ele voltar ao orfanato, mas ele não quis. Ainda assim na insistência, ela abriu a bolsa, mas a carteira de identidade dela caiu. Quando Pedro tentou pegá-la, arregalou os olhos em sobressalto.

Os nomes coincidiam com o de sua mãe e sua avó. Aquilo era inacreditável. Ele pensou rápido: “E se eu disser que sou filho dela? Ela me rejeitou”. Passaram mil pensamentos na cabeça dele, mas o menino reagiu rápido:

– Preciso te mostrar uma coisa.

Ao abrir a mochila e retirar a pasta com os documentos, perguntou a Maria Clara:

– O que você se lembra do dia 4 de dezembro de 1996? E entregou a certidão de nascimento a ela. Ao começar a ler o documento, a mulher desmaiou, Pedro Paulo ficou arrepiado. O menino era o filho do casal que, até então, morrera minutos após o parto… Aquilo não podia ser verdade… ou era demais para ser uma grande mentira.

– O que é isso, garoto? Que brincadeira é essa?

– Eu não estou brincando, moço; leia todos os documentos. Até eu estou surpreso. Como eu poderia imaginar que pudesse encontrar vocês no meio do nada? Eu só queria fugir daquele orfanato onde eu morava e aproveitei o alagamento que teve lá. Todos os funcionários e crianças conseguiram ficar a salvo nas casas da vizinhança, mas eles se esqueceram de mim. Gritei muito, mas ninguém me ouviu. Então tive a ideia de ir para o escritório no segundo andar e procurar pelos meus documentos, enquanto a água subia mais de um metro de altura lá embaixo. Depois de quase duas horas, encontrei tudo na última gaveta dentro de uma pasta sem nome. Peguei a pasta com tudo. Olhe aí, esse não é o nome da sua sogra? Ela que assinou os documentos para a minha matrícula… Por que ela fez isso?

– Garoto, nós precisamos levá-lo à Polícia, porque você deve voltar para o orfanato. Você roubou os documentos de alguém… Nesse momento, Maria Clara acordou.

– Olha se ele tem uma pinta roxa atrás da orelha esquerda!

– Vou chamar a Polícia porque isso só pode ser mentira. Veja o que você fez com a minha mulher. Nosso filho morreu há 12 anos. Tem ideia do que é isso, menino? Perguntou o homem desesperado enquanto passava um lenço no rosto da esposa; ela suava frio. Nesse momento, Maria Clara diz com voz meio rouca:

– A pinta da orelha! Se tiver, é meu filho! Realmente, Pedro Henrique tinha uma pinta na orelha e ele nem sabia. Isso não foi o suficiente para o pai do garoto se convencer.

– Meu amor, nós fomos ao velório, o caixão estava lá… Então, o que sua mãe fez com a gente?

No meio de toda a papelada do orfanato, existia um documento assinado por Antônia, entregando o neto para adoção. Motivo: a família não tem condições psicológicas de criar uma criança que não tem parte da perna.

Os três ficaram assustados. Como assim? Qual o motivo de tamanho preconceito? E o menino soluçou:

– Eu só queria uma família, mais nada. Há quanto tempo busco uma mãe e um pai…

Os três se abraçaram longamente e choraram por alguns minutos. Mesmo com uma certa desconfiança de Pedro Paulo, seguiram em direção a um laboratório de um conhecido da família para realizar um teste de DNA, depois de muita insistência de Maria Clara.

O casal não conseguia entender a decisão de Antônia, assunto no qual havia uma lacuna. A avó morrera de infarto e não conseguiu contar nos últimos minutos – até que tentou -, mas não conseguiu explicar seus motivos. Pedro Henrique a reconheceu como doadora dos três pares de muletas que ganhara no orfanato. Ele sentia que a avó tentava se redimir daquela triste decisão de um passado nebuloso, mas por quê? Não havia uma resposta. Era preciso perdoar e seguir em frente.

Contra a vontade de Pedro Paulo, o suposto filho ficou hospedado em casa. A notícia do sumiço do menino ganhou os jornais, a internet. O resultado do DNA foi positivo. O pai levou um tempo para reconhecer-se como tal. Afinal o baque da morte havia sido muito grande e bloqueara seus sentimentos. Mas no fundo, bem no fundo, ele estava muito feliz. O orfanato acionou a Justiça e pediu danos de reparação pelo roubo. Causa perdida. A família tinha um ótimo advogado. Durante o processo, Filomena confessou que Antônia fundou o orfanato “Luz do Sol” a fim de que o neto tivesse toda a assistência na vida, mesmo que não fosse adotado. Mas a avó jamais teria comentado no orfanato que “matara” o neto.

A família nunca entendeu os motivos, mas os três decidiram que, a partir dali, a vida de Pedro Henrique teria outro rumo. Como sempre gostou de futebol, os pais conseguiram ingressar o filho em um time de amputados numa associação para pessoas com problemas de locomoção. Era a realização de um sonho do filho. Com a popularidade do garoto, ele ganhou uma prótese de uma empresa. Isso melhorou ainda mais a sua independência. Pedro Henrique terminou a escola, entrou na faculdade de Educação Física.

A formatura como professor teria sido a última notícia que tive de Pedro Henrique, mas um dia, percorrendo sites de esportes paralímpicos, vi o nome dele como capitão do time de futebol de 5 da seleção brasileira. E soube também que, vez por outra, ele vai ao “Luz do Sol” ensinar futebol para a molecada.

Eu sabia, sabia sim, que ele só precisava e merecia uma chance para mudar o seu futuro. Um dia, Pedro Henrique me disse que sempre pensava assim: “Eu quero, eu posso, eu consigo”. E ele aproveitou todas as suas novas chances na vida. Ele, sim, é um vencedor!

Imagem: Pixabay.

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.