A garota do calçadão. Por Juliana Fernandes Gontijo.

Rosana saiu pela estrada, caminhando sem rumo. Tinha nas costas apenas uma mochila com uma garrafa de água, camiseta, bermuda, par de tênis, sabonete, pasta e escova de dentes.

Ela queria conhecer o mundo, trocar experiências, quaisquer que fossem. Sem família, a garota viveu num abrigo, mas quando completou 18 anos, pediu para sair:

– Meu sonho é conhecer o mundo, saber o que há depois do Rio de Janeiro e eu preciso dos meus documentos! Vocês ainda vão ouvir falar muito bem de mim. Nunca irão se arrepender da educação que me deram. Um dia, eu voltarei para dizer “obrigada” mais uma vez.

Recebeu do Abrigo “Crianças São Flores” o RG e a certidão de nascimento. Como nome de mãe constava o de Denise Braga, a missionária que administrava o local.

A moça jamais soube quem eram seus pais verdadeiros. Apenas ouviu uma história que, por falta de condições básicas de saúde mental, os pais muito pobres perderam a guarda da menina que tinha poucos meses de idade.

No abrigo, Rosana aprendeu a costurar, bordar, fazer todo o serviço de casa. Foi muito feliz, na medida do possível, mesmo sem a presença de uma família.

Por 5 meses, morou debaixo de um viaduto no subúrbio carioca. Mesmo com todos os perigos da rua e da marginalidade, ela se virava e nunca teve coragem de roubar. Comia restos de sanduíche, frutas que encontrava em estacionamento de supermercado ou na xepa de alguma feira. Aprendeu por conta própria a fazer pequenos serviços em troca de um café com pão, prato de almoço ou janta.

Por alguns dias, conseguiu algum dinheiro como flanelinha no entorno do aeroporto Santos Dumont, mas um sujeito que “comandava” o serviço do local tentou se “engraçar” com ela. Como Rosana não cedeu ao assédio do cara, nem precisou ser expulsa de lá. Pulou fora do trampo o mais rápido que pôde.

Em um ensolarado dia de domingo, a garota estava sentada no calçadão de Copacabana e foi abordada por um policial:

– O que faz aqui, garota? Espera alguém? Vejo que está há pelo menos 4 horas sentada nesse sol quente.

Ela estava tão compenetrada em seus pensamentos em busca de uma mudança de vida que rapidamente se levantou com as mãos para cima, dizendo:

– Eu me rendo, não fiz nada! Não fui eu quem roubei, pode me revistar.

– Que é isso, garota! Sei que tu não rouba, que procura um trampo de qualquer modo. Não é desses picaretas que rondam aqui. Só gostaria de saber se eu posso ajudar em alguma coisa…

– Desculpe aí, mas já passei por tanta coisa que até já me acostumei a ser rendida pela polícia… Olhe aqui meus documentos.

O policial de nome Flávio tranquilizou Rosana, mesmo assim fez a consulta do RG no posto policial:

– Vejo aqui que tua ficha é limpa…

– Até meus 17 anos eu morei no Abrigo “Crianças São Flores”. Fiz 18 e pedi para sair. Se quiser ligar no Abrigo, fala com a Denise, eu nunca dei problema lá… Mas a minha vida não tem sido nada fácil, eu só preciso de uma oportunidade, quero trabalhar e continuar os meus estudos. Meu sonho é ser chef de cozinha!

Ele escutou por alguns minutos a história de Rosana, mas resolveu confirmar.

– Aqui tem comida garota, coma tanto que quiser. Sei que está com fome. Vou fazer uns contatos aqui, mas não vá a lugar algum, porque se tu for, eu te acho.

– Não vou sair, não. Eu não me meto em confusão não, mano…

A ligação:

– Abrigo “Crianças São Flores” às suas ordens!

– Aqui é o policial Torres, do DP em Copacabana. A senhora Denise Braga, por favor! Quero falar sobre Rosana de Almeida.

– Um momento, por favor. Espero não ser encrenca – respondeu a outra pessoa na linha.

– Senhora Denise? Estou com Rosana aqui e ela me contou que já morou aí no Abrigo. É verdade?

– Sim. O que houve? Ela se meteu em encrenca? Não temos nada a ver com isso mais. Já tem 18 anos e assinou um termo de compromisso saindo da nossa guarda. Bem que tive um mal pressentimento e…

– Senhora, espere! Eu falo agora! Ela não aprontou nada, muito pelo contrário. Eu preciso conversar pessoalmente e saber mais sobre a história dessa tal de Rosana.

– Que alívio, senhor policial. Podemos conversar agora se quiser.

– Vou liberar a garota. Vi que ela estava aqui no calçadão de Copacabana quase desidratada de tanta fome e a chamei para tentar ajudar… Mas alguma coisa na história dela não bate! Em uma hora chego aí. Já anotei o endereço – e desligou o telefone.

– Se manda garota, vou ver o que posso fazer por tu. Por hora, a comida já acabou. Vou tentar arrumar um trampo pra tu, mas juízo, hein? Não quero te ver metida em encrenca!…

– Claro que não. Eu só preciso de uma oportunidade… Posso levar o resto do bolo e do leite?

– Leva tudo!

A garota colocou o resto da comida na mochila e se mandou no meio da multidão naquele ensolarado domingo. Em seguida, o policial Torres pegou o carro e foi até o Abrigo. Chegando lá, Denise já estava no portão, preocupada com possíveis encrencas de Rosana.

– Senhora Denise, por favor, não há encrencas com Rosana. Na verdade, eu preciso esclarecer algumas informações dessa garota. Quero saber se, realmente, ela tem boa índole. Levantei a ficha e vi que está limpa…

– Ela nunca nos deu trabalho no Abrigo. Veio para cá com 3 meses de idade. Juvenal e Flora tinham problemas mentais e deixaram a menina aqui na porta com um bilhete dizendo que não tinham condições mentais e também moravam numa favela em Duque de Caxias…

– Você tem certeza? Você disse Flora e Juvenal, em Duque de Caxias? Não pode ser…

– Como assim? Eu não entendo… Deixa eu continuar, senhor…

Torres tira do bolso a foto de uma mulher bem semelhante a Rosana.

– Quem é essa mulher? É muito parecida com a Rosana…

– Ela é minha irmã, Flora. Infelizmente ela e o marido morreram numa enchente em Duque de Caxias há 2 anos…

– Não pode ser…

– Eu preciso encontrar Rosana de novo. Eu acho que ela é minha sobrinha. Nossa família nunca soube o que Flora e meu cunhado fizeram com a criança… É como se eles bloqueassem as memórias, entende?

O policial ainda disse mais algumas palavras que Denise não entendeu, enquanto entrava no carro e saiu com a sirene ligada. Ele acionou todo o DP e enviou a foto de Rosana por mensagem, dando as características de roupas da garota. Camiseta vermelha, bermuda preta, chinelo, mochila listrada com o escudo do Vasco.

– Não rendam a garota. Ela está muito assustada, porque eu já conversei com ela hoje. Ela só quer trampo, como me disse… Abordem com jeito e levem ela ao DP. Não deve ter ido muito longe, estava no calçadão aí perto há cerca de 3 horas. Em alguns minutos, chego aí. Depois eu explico…

Quando Torres entrou na sala, Rosana já estava chorando e rezando para que não a prendessem.

– Olha garota, precisamos fazer alguns exames. Acho que te arrumei uma oportunidade, mas vai demorar alguns dias…

– Exames de quê?!

– Não te interessa, garota! Vai colaborar ou não? Se não quiser o trampo, pula fora!

– Tá legal, desculpe aí… Vamo nessa!

Os dois foram ao laboratório e recolheram as amostras para os exames. O policial ainda pediu outros de rotina com a desculpa de que lhe arrumaria um emprego. O resultado sairia somente em duas semanas.

A ansiedade dele era grande, pois tinha certeza de que Rosana era sua sobrinha perdida no mundo. Ele só queria a prova do exame. Os dois encontraram-se em frente ao laboratório e ele estava convicto da resposta positiva. Mas, ao contrário do que imaginava Torres, o exame deu negativo. Era muita semelhança para nada…

O homem se segurou para não chorar. Rosana estranhou a situação, mas evitou fazer perguntas ao policial, afinal ela só queria uma oportunidade de trabalho.

– E então? Vai me dar o emprego ou não? Eu fiz os exames que tu pediu!

– Eu vou te arrumar o emprego, garota! Mas não me enche! Vamos embora daqui. Enquanto os dois caminhavam para o carro, Torres enviou uma mensagem para um amigo dono de um restaurante na Tijuca. “Vargas, arrume uma vaga de auxiliar de cozinha para uma garota de 18 anos, boa índole. Dê a ela 3 meses de experiência, vou arrumar os documentos. Se aprontar, demite! Não dê segunda chance. Ass. Torres”.

Uma semana depois, Rosana estava de carteira assinada, trabalhando em um grande restaurante no Rio. Em 5 meses, conseguiu alugar um quarto e ficou definitivamente livre do albergue onde dormia. Sempre que podia, passava pelo DP de Copacabana e levava ao Torres um prato diferente que ajudara a preparar no restaurante.

– E aí? Depois de muito tempo, posso chamar tu de Flávio? Não sei como fizemos amizade, mas eu gostaria muito de chamar de padrinho, tá valeno? A minha vida mudou por tua causa, cara! Você ainda vai me ver fazendo um baita sucesso… Te devo essa, me’rmão! Te devo essa… E novamente a garota sumiu pelo calçadão de Copacabana.

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Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.