A fuga do circo. Por Juliana Fernandes Gontijo.

Nilvaldo, um menino magrinho de aproximadamente 9 anos, morava numa pequena cidade no interior de Minas, quase divisa com a Bahia. Vivia com os pais, Cassimiro e Nilceia, e oito irmãos em um pequeno barraco muito organizado e bem simples, pois a família não tinha boa condição financeira.

O casal e o irmão de Nilceia, João, cuidavam de uma horta. Eles davam um duro danado e tudo era cultivado nos fundos da casa do tio de Nilvaldo. Durante a semana, o menino e os irmãos ajudavam na horta, depois da escola. Eram “obrigados” a ficar no terreno pelo menos duas horas de tarde, e depois fazer o para-casa da escola. Precisavam ser rápidos, pois não havia luz elétrica e não dava tempo de fazer o dever da escola só com três lampiões em casa. E o pai dizia:

– O trabalho engradece o bolso e enobrece a alma. Aprendam isso p’ra vida! Estudo também!

E era assim de segunda a sexta. Sábado e domingo eram os dias da “farra”. A venda da verdura ficava por conta dos pais e dos 3 irmãos mais velhos, Nilvaldo era o quarto filho – e, então, estava fora do comércio.

Ele gostava muito de brincar com os vizinhos e parentes de “bente altas” e “rouba-bandeira”. Adorava subir em árvores, soltar pipa, mas também gostava de fazer uns “truques” de sumir objetos e deixava os pais de cabelo em pé. Tinha o sonho de ser um famoso mágico. Os vizinhos se reuniam e Nilvaldo dava seu “show”! Sumia até com o dinheiro do bolso do seu pai. Como não havia energia elétrica na cidade, era muito fácil “trapacear” o povo. Depois sempre devolvia todos os tostões.

Outras vezes, chamava uns amigos quando tinha um velório na vizinhança e amarravam o dedão do pé do defunto com uma linha de anzol e a levavam para a janela. Após a reza das beatas, sumiam pé-ante-pé e, da janela, puxavam o dedão do morto. Voava gente para tudo que é lado. Um dia, a barra do vestido de uma viúva pegou fogo e foi a última vez que Nilvaldo brincou com a “morte”. Tomou uma coça que nunca mais esqueceu.

Um dia, chegou, de manhã cedo na cidade, uma trupe de circo. Nilvaldo estava de férias da escola e ficou lá quase o dia todo vendo a trupe organizar a “mudança”. Nem quis saber de ir para a horta. Queria mesmo era ver o trabalho dos artistas. Quem sabe poderia aprender alguma coisa diferente, se lá tivesse um mágico, daqueles que “cortavam” as moças ao meio.

Naquele tempo, os animais ainda podiam ser utilizados nas apresentações. A trupe tinha um casal de chimpanzés, um coelho enorme e um leão, que mais parecia um filhote. O dia, que começou ensolarado, foi dando lugar a um céu escuro e caiu um temporal no fim da tarde. Voltou correndo para casa, mas chegou todo molhado. Correu para o banheiro, pois estava “apertado” com dor de barriga, tomou banho de caneco e foi para o quarto. Mas quando foi se deitar, viu um volume estranho se mexendo debaixo das cobertas. Seus irmãos já estavam dormindo; e os pais, na igreja. Pegou um lampião, levantou o cobertor e… lá estava aquele coelhão do circo, tremendo. O menino ficou desorientado. Iluminou mais um pouco e percebeu que não era um coelho e sim uma fêmea em “trabalho de parto”. Como aquela “dona grávida” havia entrado em sua casa? Mesmo com a agressividade dela, o menino não podia deixá-la na sua cama. Juntou todas as cobertas, fez como se fosse “uma espécie de ninho” e levou tudo para a varanda no fundo da casa. Arrumou uma caixa de verduras vazia e colocou “o ninho” lá dentro.

“Conversou com ela”, dizendo que não desejava lhe fazer mal, mas era preciso a “dona” ter paciência que todos “os meninos e ela” ficariam bem. Ali permaneceu rezando e esperando o que pudesse fazer para ajudar naquele problema tão difícil…

Como falar com seus pais? Como iriam acreditar nele, pois Nilvaldo gostava muito de coelhos, mas sabia que não era possível ter um, porque eles fazem muita sujeira… E aquele era um coelho de mágico!

Não demorou muito para a coelha “ter” os três filhotinhos e ficar mais tranquila. Os pais chegaram e encontraram o filho assustado e muito suado, sentado ao chão, acariciando os 4 animais. Cassimiro e Nilceia ficaram estáticos após uns segundos e já “trataram” de xingar o menino.

– Não fui eu, mãínha. Eu num peguei essa cuelha. Estava lá perto da montage do circo e começou a chuvê, então voltei correno p’ra casa. Esqueci a porta aberta, pois tava com uma baita dor de barriga. Tumei banho e quando fui deitá, assustei cum um monte dibaixo das cuberta. Oiei e vi que ela tava parino us filhutim.

– Nóis não pode ficá com um cuelho e chei de filhote em casa, fio.

– Painho, mas num vô devolvê a cuelha. Cumé que eis vai cuidá dos bicho?

Nilvaldo começou a chorar, dizendo que ia cuidar deles. Os pais ficaram nervosos, mas o menino não arredou pé da varanda.

– Daqui num saio, daqui ninguém me tira.

O menino sabia que não poderia dar cenoura para a coelha, pois provocaria diarreia. Então catava algumas perdas de folhas de alface da horta.

O casal foi se deitar, dizendo que ainda iriam conversar sobre o “baita problemão da coelhada”. Mas o menino não arredou pé da varanda, nem almoçava direito.

No terceiro dia, depois do café da manhã, sem falarem com o filho, os pais foram até a “tenda do circo” a fim de conversarem com a trupe. Eles precisariam resolver aquela confusão. Nilvaldo deu falta deles e saiu correndo até chegar à tenda.

– Eu num peguei a cuelha! Ela deve ter fugido atrás de mim, só pode, mas tamém num devolvo. Se ocêis num subé cuidá deis direito? Cumé que fica?

– Devolva a minha coelha, rapaz! Você a roubou! Alfonsus, dono do circo, estava irado com o sumiço da coelha. Ele era também o mágico.

– Devolvo não! Cêis num vão cuidá dela direito!

Nilvaldo caiu no choro novamente. Enquanto Nilceia tentava consolar o filho, Cassimiro voltou em casa e, com todo cuidado, levou os animais de volta à tenda.

O menino percebeu que perdera aquela discussão.

– Tá bão, devolvo, mas com uma condição: todo dia, venho aqui cuidá deis.

Alfonsus não gostou muito da ideia, mas resolveu ceder. E assim fez. Com o tempo, o menino começou a fazer amizade com o mágico. Além de ajudar a cuidar dos animais, ele começou a entender sobre outros truques mais difíceis, porque tinha muita facilidade. Assistiu todas as apresentações do circo e aprendia cada vez mais.

A amizade entre os dois cresceu tanto que, ao se despedir da cidade, o dono do circo perguntou aos pais de Nilvaldo se o menino poderia viajar com a trupe por uma semana até a cidade vizinha. Ele fez tanto drama que os pais resolveram deixá-lo.

E ele aprendeu muito mais de mágica nesse pouco tempo de viagem. Era um garoto muito esperto e inteligente. Auxiliava até em algumas apresentações. Foi uma semana muito feliz.

Alguns anos após o episódio da coelha, a trupe voltou à cidade e o convidou para substituir Alfonsus nas apresentações. Em poucos meses, o ilusionista “Nil” começou a fazer sucesso naquele circo em todos os cantos do mundo.

Imagem de Mairinha por Pixabay. [https://pixabay.com/pt/photos/circo-mostrar-tela-de-pintura-342854/]

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.