A duplinha da escola. Por Juliana Fernandes Gontijo.

Aquele dia no Instituto São Domingos Sávio, no interior de Minas, parecia ser mais um dia comum de aulas pela manhã e pela tarde. Faltava apenas uma semana para as férias de julho. Era quinta-feira, o dia da hora cívica, de cantar o hino nacional.

Por volta das 7 e meia da manhã, um aluno grita desesperado no pátio da escola:

– Credo, Fessora, tem sangue na torneira do bebedouro!

– O que é isso, menino! Santo Deus! Como assim, sangue na água? – Joana, professora de matemática, correu para ver se era verdade.

– Fui lavar a boca e a água ‘tá com gosto de sangue! Eca! – Gritou uma menina no banheiro.

Joana deu descarga no sanitário e mais água vermelha. Foi até cozinha, pediu que uma cantineira abrisse uma torneira e… Água vermelha!

– Como vamos fazer a merenda da escola? – Desespera a cantineira. – Isso só pode ser um rato morto! A escola vai ser fechada e vamos perder o emprego.

– Precisamos olhar a caixa d’água. Tem alguma coisa errada, espero que não seja algo grave. – Diz João, o inspetor da escola. Ele vai ao local e sobe na laje. A caixa d’água está fechada, teoricamente normal. Quando abre, está tudo vermelho e, ao tampá-la, encontra um pedaço de um pacotinho de suco agarrado na tampa. Respirou aliviado, mas com vontade de “capturar” um ou mais “anjinhos” que aprontaram daquela vez. Seriam, no mínimo, três dias de suspensão.

As aulas precisaram ser canceladas naquele dia. Não havia a menor condição de fazer a merenda.

A dupla dinâmica Breno e Adriano, amigos inseparáveis, tinha apenas 12 anos cada um, mas a mentalidade dos moleques era de fazer inveja a qualquer adulto. Breno era o mais esperto e, na maioria das vezes, planejava todas as peripécias. Adriano ajudava a executar tudo. A mãe de Breno, Fátima, era professora de geografia na escola há mais de 10 anos, porém o filho nem se incomodava com isso. Fazer traquinagem era com ele mesmo… com o grande amigo, Adriano.

Naquele dia, Breno só precisava que a mãe saísse para a escola mais cedo e ele colocaria um plano que arquitetou na última noite mal dormida. Foi até a mercearia do tio Afonso, irmão de Fátima.

– Tio, minha mãe pediu uma caixa com 50 saquinhos de suco de morango. Põe na conta dela aí… Afonso entregou a caixa.

Breno chegou à escola e chamou Adriano num canto:

– Para a caixa d’água, porque eu tenho uma ideia genial. Vamo “pintá” a água da escola.

– O que ‘cê vai fazer desta vez, Breno?

– Deixa que eu comando! Peguei na mercearia do meu tio uma caixa de suco de pó de morango e falei que minha mãe tinha pedido. Rasga tudo aí que vamo jogá lá dentro. Cê dá “pezinho”, porque é mais alto, e eu subo na laje primeiro. Depois sobe ocê! Aí nóis mistura o pó na água. E é só a conta de terminá de saí a água dos cano que o “trem” tá feito.

No entanto, ouvem um barulho perto dos fundos da escola. Um cachorro quase atrapalha o plano ao derrubar um latão de lixo. Tamparam a caixa, juntaram os pacotinhos, colocaram numa sacolinha de plástico e a jograam na lixeira.

Voltam para o pátio da escola, mas antes passam no banheiro e lavam bem as mãos e os braços, porque a água ainda não estava vermelha. Começa o horário do hino nacional. A dupla de “anjinhos” está convicta de que não havia deixado rastros.

Margarida, a vice-diretora, decidiu sair pelas salas da escola e verificar as mãos de todos os alunos para ver quem poderia ter feito aquela bagunça e alterado toda a rotina da escola. Assim que terminasse a “busca”, a escola interromperia as aulas para fazer a limpeza da caixa d’água, pias e banheiros.

Ela passou de sala em sala olhando mãos, braços e até unhas se fosse preciso. A última sala foi a de Breno e Adriano. Quando ela chegou perto dos meninos, os dois nem se quer se moveram e continuavam a fazer o exercício de ciências.

– Mostrem as mãos, meninos. – Margarida, já desconfiada da duplinha que estava bastante quieta.

Os dois mostraram as mãos, mas como Adriano era muito branco, quase albino, suas unhas estavam sujas de vermelho. Breno não ficou para trás, estava com uma pinta vermelha no cotovelo. Achou que tivesse lavado tudo.

– Não fomos nóis, não. Eu e Adriano brincamos com guerrinha de balões com tinta ontem lá em casa. Margarida pegou os dois pelos braços e os levou direto para a sala dela. Ali já mandou chamar Fátima. A mãe de Breno entrou na sala nervosa com o filho. O olhar dela dizia: “em casa, vai ter!” Ligou para a mercearia do irmão e perguntou sobre o suco.

– Entreguei, Breninho disse que você pediu…

Nem esperou o irmão falar mais, já desligou o telefone. Ela estava roxa de raiva e de vergonha do filho.

– Breno, nem vou dizer nada. Você já sabe a hora que chegarmos em casa! Ah… por isso você tanto insistiu, em casa, que viria a pé para escola. – Esbravejou Fátima.

– Vão assinar a ocorrência; três dias de suspensão, mais ajudar o João a lavar a caixa d’água, todas as pias e banheiros da escola. E vão ficar aqui até vocês acabarem todo o serviço, começando agora. As aulas hoje serão interrompidas. Não há como fazer almoço para os alunos. Viu o que vocês fizeram? É uma vergonha! E não tem desculpas!

Os meninos passaram o dia todo na escola, lavando e limpando a sujeira que causaram. O pior de tudo é que nem fazer brincadeiras com João, de quem tanto gostavam, podiam fazer. Ele não queria papo com os meninos. Essa foi a grande “lição” que tiveram.

Fátima pegou o filho na escola depois das 22 horas. Chegou em casa e deu aquela “coça” de antigamente com chinelo de borracha. Breno nunca se esqueceu das chineladas da mãe lá nos anos 1990, mas toda a vez que conta esse caso de muito do suco de morango saindo pelos canos…

Imagem: Jonas Kim – Pixabay.

Juliana Fernandes Gontijo é jornalista por formação e atriz. Apaixonada pela língua portuguesa e cultura de maneira geral, tem bastante preocupação com sustentabilidade e o destino do lixo produzido no planeta.