Quem produz, quem veicula e quem impulsiona 'fake news'?

Deu anteontem n’O Antagonista:

LINK – https://www.oantagonista.com/brasil/canais-de-youtubers-bolsonaristas-receberam-verbas-estatais/

COMENTÁRIO

A desonestidade intelectual é o vírus da hora na media mainstream… e na alternativa também. Infelizmente.

Com o advento da internet era de se esperar o enfraquecimento da mídia tradicional. Duas décadas e meia depois, é fato.

Além de concorrer – em conteúdo – com o rádio, a TV, os jornais e as revistas, a internet também apropriou-se desses meios. Assim, ao lado de iniciativas ‘puras’, como Yahoo! e UOL, por exemplo, veículos da ‘era analógica’ também foram para a rede em busca de audiência. ‘Digitalizaram-se’. E a Rádio Tupi tornou-se, também uma web-rádio, a Cultura uma web-TV, o Estadão virou web-jornal, e a Exame, web-revista – também só para citar alguns exemplos.

Do lado do público, as fontes de informação alargaram o cardápio e, mesmo quem não assinava os veículos (bem mais em conta em versões on-line), passou a receber boa informação gratuitamente. Até hoje é assim.

Aliás, um dos alicerces – e virtudes – da cultura da internet é a gratuidade. Mas, também, por outro lado, a cultura da gratuidade também trouxe vício e enfermidade – passada aos veículos e ao público pelas próprias plataformas. Aí reside o nó da questão da disseminação de fake news.

Impulsionamento é um palavrão.

Este O.C.I. vem chamando a atenção para a doença chamada ‘impulsionamento’ há muito tempo.

Basta entender o seu mecanismo – baseado em algoritmos como Ad Sense e Ad Words (do Google) – para dar-se conta dos problemas.

‘Publicidade programática’ é outro.

Busque, aqui no portal, matérias clipadas e conteúdo produzido sob essa expressão e, também ‘mídia programática’, ‘fake news’, e ‘uso indevido de dados’. Há muita coisa.

Anunciar na web surgiu como alternativa barata e com poder de penetração enorme. A partir de ‘categorias’ (‘alimentação natural’, ‘educação a distância’, e ‘veterinárias 24 horas’ – por exemplo), você – na pessoa física ou na jurídica – pode anunciar diretamente, sem a ajuda (e o custo) de uma agência de propaganda. Você mesmo pode preparar o seu anúncio, escolher a abrangência da cobertura (se sua cidade, estado, país – ou países – por exemplo), públicos-alvo (por sexo, idade, atividade) e definir intensidade (quantidade de ‘impressões’ oferecida e duração da ‘campanha’). Pronto!

Boleto ou cartão?

De repente, com alguns clicks, todo um conhecimento acumulado em setenta anos de uma das melhores indústrias do país (a nossa propaganda – tida como a quarta do mundo, atrás apenas da americana, da inglesa e da espanhola), ao seu alcance – e sem pagar por isso! (E os próprios veículos alegam: – Você não paga a criação ou a comissão de agência!). Tentador. E é aí que mora o perigo.

O randômico e o big data.

Quase tudo, na web, trafega e chega até nós por via randômica. O que é isso? A distribuição de qualquer ‘pacote de dados’ (textos jornalísticos ou não, imagens, vídeos, anúncios) na internet como um todo (à exceção dos e-mails e dos sites – que são pontuais endereços conhecidos), é indistinta e não personalizada. (Claro está que, com a sofisticação de uso do chamado big data, a personalização cada vez mais avança – mas este é um outro capítulo dessa história). Os critérios mais utilizados ainda são o etário, o geográficos e o de atividade.

A má fé.

Ninguém – na media mainstream – se preocupou em explicar ao respeitável público o funcionamento da internet como mídia comercial. Incrível! Pois, se explicassem, talvez tivessem perdido menos assinantes e os danos do ‘frenesi digital’ fosse um pouco mitigado. Mas, não.

A ‘cultura da gratuidade’ cegou as massas e o povo que investiu para ser mídia na web se colocou logo ali, depois da esquina, com a máquina registradora na mão.

Caiu na rede, é peixe.

Tal gratuidade tem um preço – o da perda da nossa privacidade. Quanto mais nos embrenhamos na rede, mais dados nossos deixamos. Um rastro de informações pessoais, cadastrais, gostos, preferências, hábitos, lugares, relacionamentos – tudo enfim que vamos fornecendo ao clicar ‘concordo’ a torto e a direito.

Hoje, quando ouço ‘baixe o app’, já vou levantando as mãos.

Pois bem, mil ‘impressões’, hoje, num Google ad, custa bem pouco. Você paga e o Google ‘distribui’. Randomicamente. E, se você não programar para além do básico, aí acontecem os absurdos, tais como um banner de recrutamento do ISIS ‘impresso’ sobre um vídeo – no canal YouTube – da Cruz Vermelha. Ou um anúncio da Petrobras num vídeo – no canal YouTube – do Partido A ou do Partido Z.

Pela lógica comercial do algoritmo, o(s) site(s) de conteúdos (de blogs a portais), sobre os quais se dão ‘impressões’ recebem uma parcela do valor pago pelo ‘anunciante’ que ‘impulsiona’. Hoje, algo mais ou menos como 2 reais por 1.000 impressões. É a tal da ‘monetização’, outro palavrão, meio de financiamento de 9 entre 10 ‘youtubers’ – os que amamos amar e os que amamos detestar – indistintamente.

Para comparação, no auge de seu valor de tabela, uma única inserção de 30 segundos na faixa de horário do Jornal Nacional chegou a custar 1.007.000 reais.

Lembrando o que aqui já explicamos: as fake news não conspurcaram só o jornalismo – por algo fake ser dado como news. As fake news atingiram, também, a propaganda, pois que impulsionadas como se anúncios fossem.

Quem produz news?

Resposta: o jornalismo profissional. E este deveria ser um critério de seleção, não só do público, mas sobretudo do fisco, do Estado e de quem quer que seja encarregado de supervisionar o meio.

Importante: ‘monetização’ de um site significa profissionalização de quem nele põe conteúdo próprio? Mais: qualquer conteúdo próprio que ‘qualquer um’ posta na web pode ser considerado news? Cartas para a Redação?

Quem veicula news?

Resposta: o jornalismo profissional. De novo. E aí entra um ingrediente que este O.C.I. também já discutiu muito; a regulamentação da atividade de jornalista. Como, desde 2009, ficou sacramentado – pelo SFT – que ‘qualquer um’ pode se atribuir a alcunha ‘jornalista’, este fio da meada também precisa ser considerado nesta crise.

Quem impulsiona news?

O nó górdio da questão está neste termo muito impreciso. A lógica original é esta: impulsiono um anúncio de venda de meu carro para que tal anúncio atinja mais pessoas. Ponto. Se fica claro o significado da ação ‘impulsionar’ nesta situação, a coisa muda de figura quando o anúncio é, por exemplo, uma peça de marketing político-eleitoral. As regras que se aplicam à comercialização de carros usados dão – e deveriam dar – infinitamente mais liberdade que um regramento político-eleitoral.

Discutiu-se no Congresso Nacional – por anos – o tema do ‘financiamento de campanhas eleitorais’. E esta questão não ficou bem resolvida. Ainda mais quando migramos de um modelo que permitia a participação de empresas para um outro que preconiza o financiamento de campanhas políticas só por pessoas físicas. E, sim, há limites, há a necessidade de comprovações junto à Justiça Eleitoral – mas claro está – pela própria existência de uma CPMI no âmbito do Congresso Nacional sobre a matéria – que a questão não está bem solucionada.

As ‘tias’ do WhatsApp.

Faltou combinar com os russos – que, aliás, criaram outro playground para elas; o Telegram – se esta ferramenta (mais um app) é rede social, se é ‘mídia’ comercial ou se é um produto pirata que veio roubar faturamento das companhias telefônicas.

No início, o Governo Federal (gestão Dilma-Temer) tendeu a considerar ‘piratas’ tanto o WhatsApp quanto a Netflix(!) – justamente por constituírem inovações sem regulamentação própria (numa forma de ‘uberização’). O uso e a prática soterraram a questão ética – e aí mora um outro relevante fio desta meada.

A Justiça acabou sendo o repositório de inúmeras querelas e pedidos de retirada de conteúdos ‘do ar’ (e ‘ar’ aqui, agora ‘infosfera’, perdeu seu sentido), além de litígios – desde uma briga de ex-cônjuges até disputas de gigantes transnacionais por nacos do mercado digital.

Caos.

Foi o que se deu quando, em 2016, uma ação fez um juízo decretar a retirada do WhatsApp ‘do ar’ por 72 horas – em todo o país. Relembre o caso e como você reagiu a ele.

Pois esta é a única forma – minha opinião – de minorar (‘resolver’ é impossível, ainda que ministros do STF bravateiem o contrário) o problema do efeito de más práticas de compartilhamento de conteúdos nos aplicativos de trocas de mensagens (que, se falsos, desservem): retirar ‘do ar’ aplicativos como o WhatsApp durante os 45 dias de duração das campanhas eleitorais brasileiras.

O mesmo raciocínio, infelizmente, também se aplica ao tal do ‘impulsionamento’ de conteúdos nas redes sociais. Algo drástico e impossível de implementar, mas motivação de ‘entender melhor’ que o caso Cambridge Analytica (2018) provocou na União Europeia e no Congresso dos Estados Unidos (onde Mark Zuckerberg, candidamente, à época, numa comissão parlamentar de inquérito, se disse ‘preocupado’ com as eleições – no Brasil, no México e na Índia).

E segue o baile…

 

Sobre Marcondes Neto

Bacharel em Relações Públicas pelo IPCS/UERJ. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP, sob a orientação de Margarida Kunsch. Professor e pesquisador da Faculdade de Administração e Finanças da UERJ. Editor do website rrpp.com.br. Secretário-geral do Conrerp / 1a. Região (2010-2012).